quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Questões de ateísmo 2 - Fé

"Ser ateu requer mais fé que crer em Deus". Clássica frase da sabedoria popular que pretende insinuar, ao que parece, a ineficácia do ateísmo enquanto empirista. Bem, concordo que nem tudo é passível de embasamento empírico - para isso temos as verdades filosóficas -, mas entre defender uma posição sustentada por algumas afirmações absolutas e ter fé há um grande salto. A fé requer compromisso total e inviolabilidade de crenças, ao menos algumas específicas, coisa que não faz parte do ateísmo - talvez só de sua vertente "forte", aquela que afirma categoricamente não existir Deus*, ou seja, a minoria. Ser ateu, portanto, não requer como fundamento a fé - e para a maioria dos ateus, inclusive, a fé não é um mecanismo aceitável.
Mas deixemos tudo isso de lado. A declaração por si só incorre em erro quando produz consequências lógicas falhas. A crítica ao ateísmo parece sair pela culatra e atingir a própria fé, tão defendida no teísmo. São três as possíveis decorrências da declaração, dependendo do tom que extraímos de sua manifestação. Antes de tudo, contudo, devemos postular a fé como virtude - ter fé significa ser virtuoso, pelo menos para o bem do argumento. Acho difícil acreditar que algum teísta que proponha este argumento seja crítico da fé. No primeiro caso, a lógica parece propor exatamente que o ateu tem mais fé que o teísta. Ora, se isso é verdade, o ateu é mais virtuoso que o teísta e, portanto, todos deveriam ser ateus, ou ao menos aspirar a isso.
Podemos também, por outro lado, subentender um tom crítico - a frase critica o ateísmo por seu excesso de fé. Se é este o caso, ter mais fé seria errado, invirtuoso, ou seja, cairíamos em contradição. Alguém poderia afirmar que a fé deve ser moderada e comedida, mas isto parece desejar medir a fé como algo que, em alguns casos, pode ser danoso, o que não parece, entretanto, ser característico de uma virtude, ao menos não uma virtude absoluta e perfeita.
Por fim, poderíamos afirmar que a proposta é dizer que todos temos fé, independente do credo, e que esta pode estar direcionada equivocadamente (de acordo, é claro, com os princípios do orador). O problema é que se todos temos fé ela deixa de ser uma virtude - uma característica moral sublime a ser alcançada - e passa a ser um fato existencial humano praticamente banal. O exercício de fé não seria louvável como se pretende afirmar; pelo contrário, é fácil e cotidiano.
A conclusão é que apesar de ser consistente enquanto declaração aleatória, a frase não se sustenta quando confrontada com seus próprios conceitos: ela entra em contradição prática, se preferir.

*A tese mais defendida no ateísmo é que Deus "muito provavelmente não existe".

Chéri

Volta, meu mundo,
Volta mais uma roda
Que a terra logo chega
Em mim.
Volta, meu tudo,
No giro da saia
Num rastro de dança,
Pra laia do corpo
Que fica tão fosco
Deste lado de cá
Da pista, do globo,
Do tudo profundo,
Do mundo que quero que volte
Ao teu estado de ser
No meu estar.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Apolo

Beleza é assim um bálsamo
Que te banha os olhos
Mas afoga também.
É uma paixão fulminante
Que te queima ao toque,
Te reveste o enfoque
Numa fina camada de ilusão,
De onde sair, só com choque.
Beleza consome
Com dor e delícia
Como se uma obra de Loki
Que não te engole
Nem cospe;
Como um nome
Que te devore
E ignore.

sábado, 20 de agosto de 2011

Os pavões

Se você visse essas cores
Espalhadas nas penas
Que se agitam por sobre o mundo
E cantam de seu profundo
Por entre o vibrar,
Talvez capturasse o brilho
Da metalinguagem
Dessas aves
Reluzindo sem parar
Com suas densas flores
A chacoalhar
E dançar
E soar.

Tout-puissant

Vida que não se explica
Vida que não quer me danar
Que não pode dizer
Se não com um leve sopro
Ao pé do ouvido.
Vida que se falar
Traga-me junto à morte
Para eternificar
Meu ser, meu conforto,
Ali, rente ao nada,
E no nada
Eterno explicar.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Dirty laundry

Pilha de dirty laundry
À beira da janela
Resta abafada, embaçada
Entre seus tons trôpegos
Que caminham para o cinza.
Monte insonso, pilhado,
De mofos dos outros dias
Que escala a beira da borda
Do lado de lá
Pelas tabelas do ar.
Tão profundas cá dentro,
Tão expostas pra fora,
As roupas ou voltam à lavanderia
Ou caem no céu;
Hoje as queria caindo...
Vou lavar louça.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Livrai-nos

Eu tenho um vício
No crisma da liberdade,
Uma obsessão.
Sonho desse óleo
Acordado,
Acocorado no banco,
Esperando pela missa
Que o padre benzer
Para engolir o que ficar no frasco
Do que em mim escorrer.
Quero quedar, quero quedar
Nesse caldo de crisma
A quase acabar
Nos cacos do frasco -
Overdose.

sábado, 13 de agosto de 2011

Olaria do poema

O poema de hoje
Não cabe no papel,
Não cabe no dia,
Não cabe no céu,
Não cabe na mente
Ou na música,
Nem no fel.
O poema de hoje
Não tem metáfora
Não se exprime
Não se compraza;
Ele não tem propósito
Ou insurreição
Não cabe nem mesmo
Na palma da mão.
O poema de hoje
Não sabe a que veio
É como a fatia de pão
Que não vem do centeio,
É como farinha
Que veio do chão
E formou-se assim...

Como Deus
A criar o homem.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Dividendo

Deve tudo ser rebote
De outro ser,
Ou pelo menos parece;
Já ouvi dizer 'tudo que somos
É reinvenção e releitura',
E me parece correto.
Este poema, portanto,
É jazz - e espero
Que o leias a este tipo de som
E entendas que quando escrevo
Pouco importa aquilo que entendas;
Antes, que o sintas.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Confissão romântica

Qual amor queres:
O de sempre, do compromisso velado,
Do cotidiano espalhado
Como poemas sobre a mesa,
Ou o de luxúria
Que gloriosa ressoa no silêncio
Gritando sua essência duradoura
Num minuto rompante?
Eu quero todos,
Como romântico egoísta que sou;
Quero amar nas cousas pequenas
E também nas grandes,
Como se amar fosse só para mim.
Pobre de mim,
Que não sei amar
Se não for em mim.

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Ricochete

Quem sabe viver
Ricocheteia
Como a dose de whisky
Que bate no ventre
E volta à mente
Rápida tal qual a bala
Cujo mergulho é doce ao coração
Em meio ao bumbo da canção
Para perder-se no instante
Em que se nota.
Então, não note seu pulso,
Senão ela some num mergulho vertiginoso
Sem musicar.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Cópia Fiel

Não me faltam elogios para descrever o primeiro filme ocidental do iraniano Abbas Kiarostami, Cópia Fiel (Copie Conforme, 2010). Devo admitir que não conhecia o diretor até então e portanto sei muito pouco de seu histórico cinematográfico, apenas uma ou outra descoberta cibernética, mas a construção deste longa por si só já possui conteúdo suficiente para uma longânime discussão. Já aviso de antemão que este post conterá inúmeros spoilers, inclusive uma interpretação do final do filme.
Cópia Fiel conta a história do escritor James Miller (William Shimell) e a personagem de Juliette Binoche (cujo nome nunca é mencionado no filme) e a relação dos dois ao longo de uma viagem a uma cidadela perdida na região italiana da Toscana. A proposta central do filme é apresentada logo de início - Miller está na Itália para falar de seu mais recente trabalho, um livro cujo título é o mesmo do longa. A obra propõe que, em se tratando de arte, uma cópia é tão valiosa quanto um original. Este conceito, entretanto, transpõe os limites do universo artístico no decorrer do longa e passa a caracterizar também a relação entre os protagonistas - até que ponto um casal é autêntico ou clichê e como isso se reflete em seu cotidiano?
Na verdade, de início pensamos que Miller e Binoche (resumirei a expressão "personagem de Binoche" simplesmente com o sobrenome da atriz) estão se conhecendo e começando a apaixonar-se um pelo outro. Ao final, saímos convencidos de que eles eram, de fato, casados desde o princípio, ou pelo menos somos induzidos a pensar dessa forma. Kiarostami brinca o tempo todo com nossa noção de verdade e mentira e parece não desejar contar-nos todos os fatos simples e puros - como por exemplo se deveras são casados. Para não se perder na trama o espectador deve estar preparado para lidar com seus subjetivismos e o verdadeiro material do filme - o que importa aqui, como em quase todo bom filme, não é o desenrolar da história em si, mas o conteúdo implícito a ela.
Porém também não podemos tirar da narrativa seus méritos: é maravilhoso como o filme parece retratar todo o tempo de um casamento, desde a paixão inicial, passando pelos maus momentos e chegando num amor maduro e extremamente bem construído. Neste sentido o próprio surrealismo do filme ajuda: é essencial para a construção desta sensação que as personagens sejam relativamente distantes num primeiro momento e depois subitamente próximas. A cena fundamental que realiza esta transição é a do café, onde Binoche insinua ser casada com Miller. Esta sequência do filme funciona quase como um casamento de fato, ou melhor, como um gatilho de uma ressaca pós-casamento, fim de lua-de-mel, onde os problemas do cotidiano subitamente afloram (tanto que o filho de Binoche, supostamente filho do casal, faz uma ligação estressante à mãe logo em seguida) e brigas começam a irromper mostrando as fissuras na relação e a intensificação das diferenças entre os protagonistas. É interessante, aliás, como Kiarostami consegue extrair das personagens suas mais profundas características usando tão somente seus relacionamentos.
Ademais, a relação parece desenrolar-se em cima de clichês: pequenas situações do dia a dia cujo valor torna-se atemporal pelo fato de tratar-se de um casal. Discordâncias aqui e ali sobre um tema ou outro, visões diferentes sobre o significado da vida que invertem-se ao longo da trama, negando e afirmando-se constantemente, e, submersa nisso tudo, uma sensação de que a autenticidade do casal faz-se por intermédio das obviedades, como se fosse possível ser cópia e original simultaneamente. A proposta de Abbas, afinal, é exatamente esta: retratar um casal com o qual possamos nos identificar mas ao mesmo tempo desconhecer constantemente: pequenos segredos e lembranças ficam omissos criando este clima dialético, retratado com genialidade.
Alguns pontos em especial saltaram-me aos olhos: o primeiro deles é a participação do filho de Binoche e, talvez, Miller, interpretado por Adrian Moore (cujo nome também não é dado em momento algum). Apesar de aparecer muito pouco na trama (só no início), seu espectro parece permear todo o filme - não só em suas constantes ligações à mãe, mas também num sentido quase espiritual. Não chega a ficar claro qual a relação entre Moore e Miller, mas algumas conjecturas são insinuadas.
Em segundo lugar, para concluir, a forma com que Binoche e Miller são filmados quando estão sós em cena: Binoche é sempre vista encarando a câmera, enquanto Miller está sempre fazendo alguma coisa, ou então vemos Binoche no reflexo de algum espelho ao seu lado. Para mim, este é um ponto fundamental para a compreensão da trama por dois motivos. Para explicar o primeiro farei uso de um jogo de metáforas entre água e terra. Poderíamos dizer que a personagem de Binoche é mais "terra" - está sempre atrelada a obrigações, deseja algo em que possa repousar, um homem para acompanhá-la - enquanto o personagem de Shimell é "água" - deseja viver a vida com liberdade, uma mulher para amar com poucos compromissos e parece estar numa constante abstração existencial. Neste sentido, o foco constante de Binoche e a variância e reflexividade de Miller são retratados através de sua simples presença, e a forma que essa presença é retratada, em determinada cena.
A outra observação refere-se ao final do filme. No decorrer do longa, os sinos de igreja têm uma participação curiosa; eles surgem em um momento que, dada a discussão acerca do amor apresentada no filme, acaba sendo inusitado: ao invés de tocarem quando vemos jovens recém-casados, como seria de se esperar, eles o fazem pela primeira vez quando entra em cena um casal idoso. Os sinos refletem, parece-me, uma espécie de maturidade sagrada que seria fundamental para a consumação plena do amor. Sua religiosidade e serenidade são perfeitas para abarcar esta metáfora que atinge seu auge ao fundir-se com as noções de terra e água que temos acerca da personalidade de Binoche e Miller: na última sequência o personagem de Shimell fita profundamente a câmera, tocam sinos, Miller sai de cena e o filme acaba. Claro que esta é uma interpretação pessoal da história, mas achei que valia a pena compartilhá-la.
Afinal, este é um filme glorioso, com uma fotografia belíssima, atuações maravilhosas (com especial destaque para Binoche, que inclusive venceu o prêmio de melhor atriz em Cannes pelo papel) e uma direção irremediável de Kiarostami. Diria que deixo uma recomendação para quem ainda não viu, mas imagino já ter espantado a maioria (se não todos) dos leitores que ainda não o assistiram logo quando citei a presença de spoilers. Há muito mais que falar sobre este filme, mas o post poderia acabar ficando grande demais. Então, é isso!

Título: Cópia Fiel (Copie Conforme)
Diretor: Abbas Kiarostami
Roteirista: Abbas Kiarostami
Elenco principal:
Juliette Binoche
William Shimell
Duração: 106min
Lançamento: 18/05/2010
Distribuidora: MK2 Diffusion

Avaliação: Ótimo

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Dali não posso sair, aqui não posso ficar

Fica tu no teu tudo
E eu fico no meu limbo
Que um dia descobres
Ser limbo o tudo
Tanto quanto qualquer coisa.
A vida parece ser, afinal,
Um grande sonho
De que quero acordar às vezes
E, vez ou outra, mais profundo mergulhar,
Tudo em vão, já que o limbo
Continua a tragar
Como um lento cigarro
Que derrete na ponta
Em busca do filtro
Para apagar;
Ou como um relógio
Que derrete nas bordas
Buscando o ponteiro
A estagnar.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Pródigo prodígio

O filho que volta
Num deslize da perdição
Encontra-se rente a três portas:
O alívio instantâneo,
A náusea
E o choro.
Tanto faz de que é o alívio
Ou o asco
Ou a lágrima,
Se pela volta, se pelo cansaço,
Pelo caminho ou a desistência;
Pouco importa que mais faça
Além de quedar solenemente
Nos braços da mãe
Que vai eterna ninar.