sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Aguardo

Velo agora pelo teu destino
Rezando reza de viúva
No íntimo meu.
Levo no seio apertado
Um coração sem ar
Quase a desmaiar
Olhando tuas costas
No fundo da mente
De frente pro mar;
As mãos apertadas em si
Como se sobre um terço
Num sonho-esperanto
De longínquo mirar.
Eu quase queria chorar
Mas é tão fechado
O espaço entre mim
E o mundo
Que eu me contento
Em bater esmagado
Quieto e velado
Numa sorrateira canção.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Chamariz

Os dias não me permitem ver-lhes
Como um afresco de vaselina
No canto do quarto.
Não querem ser coletânea
Entre meus discos.
Eles estão a pedir
Um espaço de sobra
Para derramar sobre os outros
E até sobre si
Como vela uniforme.

Dos poemas, da vida, dos mistérios

As partes do poema são duas:
O início, natural e instintivo,
E o fim, construído.
Ele nasce, se pensa e faz
Entre impulso e escalada
De uma noite perfídia
A, numa conversação,
Omitir o que tem por falar.
O poema sou eu que,
Num dia, floresço e desramo.
E das flores o que se faz?
Não sei -
Só estou aqui a plantear.

Metonímia do mergulho

Hoje a vida comeu uma letra do meu riso.
Ela é assim mesmo:
Tem dias que encurta o gozo,
Noutros dá com prazer.
Eu fico achando-a com cara de quem
Está a saber como deve ser feito,
Pois é vadia - dorme com o mundo;
Mas penso afinal que ela está no mergulho
Tanto quanto eu.
Daí paro com a metonímia
E deixo-a ser-me a fundo.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Corrente

Tenho que mudar de corrente filosófica.
De quando em quando troca-se a fiação
Para não dar choque
Nem curto
Ou escorbuto.
Basta que o chão dê fruto
E aceito nova definição.
E o resto?
O resto são migalhas da navegação;
Cairão e apodrecerão
No balanço do mar
E impudor de drosófila.

Sententia

Como é possível
Que a minha destruição
Seja autônoma e mundana
Simultânea?
Sou tão carne,
Tão humano,
Mas feitiço;
Um pedaço,
Um proprietário,
Mas terra.
Sou um rastro
Sou um pé
E sou a neve.
É estranho como a simples pergunta
Entre sacro e profano
Não cabe.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Ligamento

Você não me entende muito bem;
Mas, claro, todo mundo diz isso.
Há entre meu e teu mundo
Uma ponte malfeita.
Da tua borda para cá um pedaço perdido
Da minha mal se vê um início.
Um dia as partes irão cruzar
Sem se encontrar
E cada qual virará uma ponte
A vagar em busca de um mundo
Em que aportar
Sem sequer saber desembarcar.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Poema de gânglios e glândulas

Poema de gânglios e glândulas
A fazer-se no meio da noite
No instinto de ser.
Poema pintado de azul;
Em todos seus tons,
Mas azul.
Ele que não se compraz
Em ser tudo
Sem sê-lo fugindo do todo.
Ele que não satisfaz
Seu esquema de ser poema
Urbano, nostálgico, puro,
Ou como quiser;
Não vai satisfazer.
Ele que falta uma estrofe
Jogada na grama
A fitar o céu,
Perdida na rua
A mirar o cinza.
Poema que não quer
Ser completo;
Recusa-se
Escusa-se
Usa-se do pretexto
De não saber.
Poema a não se escrever.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Anabela

Você é Anabela demais, meu amor.
É toda certa do teu jeito,
Toda esperta nos anseios
Querendo o correto na hora correta.
Você, querida, ama arrumada
Com um brinco perolado
Trajando meio ousada
Um vestido recatado.
Eu queria às vezes
Que você fosse mais assim
Dramaturga, como eu;
Mas não ouso mudá-la.
Acho, afinal, que é bom esse jeito nosso,
Você vivendo um caminho charmoso
E eu um danoso.
Acho que assim dá
Para complementar nosso amor.
Podemos andar nossa trilha
Como quem dança ao som
Da faixa favorita de tango:
Um passo rápido teu,
Um arrastado meu.
Dá até para sonhar que o paraíso é aqui
E que nenhum paraíso que venha
Depois dessa terra esbanjadora de amor
Seria melhor.

sábado, 17 de setembro de 2011

Monstruosa

Este é o mundo:
Um ser profano
Que nada ou pouco quer
E, não importando teu desejo,
Far-se-á num rodopio,
Como o destino que tanto odeias,
Até quedar odioso
Nos braços da vida,
Tão natural,
Tão cultural,
Tão social,
Tão pura quanto não desejas -
Assim, raivosa,
A engolir-te virulenta.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Ímpios!

Algo que sempre me intrigou no meio religioso é o uso da palavra "ímpio". Mais que um simples descrente, o termo designa (segundo o dicionário) "quem é contrário à religião; não respeita as coisas sagradas ou as práticas religiosas; ofende o que se considera digno de respeito; é desumano, cruel". Interessante. Especialmente porque o nome é dado não só a quem é, digamos, "contrário à religião" propriamente, mas em geral é livremente distribuído a qualquer um que não siga a prática religiosa em questão. O ímpio é, em essência, imoral, vil e maldoso; é corrompido quase que propositalmente - ou ainda pior: pelo próprio diabo.
O emprego dado à palavra em especial nas religiões monoteístas (como o cristianismo e o islã) é poderoso - refere-se a todo outsider. Essa sistemática é de um maniqueísmo tremendo que pode produzir, entre outras coisas, um profundo preconceito. Não é raro, por exemplo, que cristãos (para citar a religião mais presente entre nós, ocidentais) julguem o espiritismo, as religiões africanas e os ateus como imorais ou mesmo diabolicamente possessos. Figuras do tipo são frequentemente demonizadas em declarações que tendem a generalizá-las no satanismo - a adoração do diabo e outros demônios - ou simplesmente no ódio a Deus. A palavra "ímpio" é livremente empregada nesse contexto, tratando outras religiões (e mesmo irreligiões) como profanas e imundas.
Mas não para por aí - mais interessante ainda é o maniqueísmo entre as vertentes de uma mesma religião. O filme Homens e Deuses (Des hommes et des dieux, 2010, de Xavier Beauvois) retrata isso com maestria. Em determinadas cenas, pessoas de diferentes facções islâmicas acusam umas às outras de "não entender o Corão", ou mesmo de não o ter lido. Fora do cinema, a situação se apresenta não só no Islã, mas também no Cristianismo: não é raro que protestantes e católicos acusem-se deste mesmo mal, e mesmo entre diferentes vertentes católicas ou protestantes há essa troca de farpas. É estranho como a Bíblia e o Corão, ao mesmo tempo em que são defendidos com base na interpretatividade, vêem interpretações que fogem à linha de raciocínio de um determinado crente serem veemente negadas. A alegação? São interpretações erradas, que nada têm a ver com o texto sagrado - ou pior, são confusões implantadas pelo próprio diabo.
Por que, eu me pergunto, existe essa preocupação? Para ser cristão, por exemplo, não basta aceitar Jesus como seu senhor e salvador, independente de se você rezará para Maria pedindo que ela interceda junto a Cristo, ou que você ore em línguas? A forma que você louva a Deus não é, afinal, justamente uma forma de louvor? Ou deve existir uma forma correta de fazê-lo? Claro, a moral e os costumes estão sujeitos a análise, mas estão no mesmo nível que a moral e os costumes de todas as outras religiões e sistemas éticos. Levar uma vida íntegra e boa não é exclusividade de uma ou outra religião, nem muito menos de uma ou outra facção religiosa - e aí está o problema. O maniqueísmo de alguns monoteístas é tão profundo que eles muitas vezes não notam a diferença entre "moralmente bom" e "religioso". Não estou dizendo que todo religioso é assim, mas essas críticas preconceituosas (no sentido de que partem de noções pré-concebidas da suposta impiedade e malevolência dos outros) são notáveis em muitos, mesmo que eles não percebam ou admitam.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Eu queria pra hoje um poema perfeito

Eu queria pra hoje um poema perfeito
O qual exibiria na cidade.
Um poema, assim, com todo um trejeito
Que roubasse a atenção.
Ele, porém, não quis
Chegar nesse jeito de ser;
Pra ele basta um riso
Vindo de você.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Obviedade

A poesia é óbvia,
Você me diz -
É claro.
Tão óbvia que te engrandece;
Tudo que há de leigo
Se enaltece.
Mas, quando a olhas de novo,
Obscurece
E tudo claramente desaparece.

Ars

Baixo ali no ouvido
Grunhe um som,
Uma voz discreta,
Como um leve arranhar
Do ar na vitrola.
Aqui, pequena,
Feito plano de fundo;
Eu não consigo saber
Ao certo o que diz;
Mal sei o assunto;
Nem sei o que estou falando.
De leve a vitrola a tocar
Esfarela um rumor
Sobre mim;
De leve se diz;
De tão leve, se ouço, desfaço.
Deve estar tocando
Nesse quadro
Uma melodia insonsa
Intensa e magra
Que, eu não sei,
Não consigo explicar;
Ela mal me comove,
Mas o que comove
Fica ali
A incomodar.

sábado, 10 de setembro de 2011

O meu sabiá

Eu tinha em mãos um sabiá
Que de tão lindo guardei.
Ele um dia veio e pousou na minha mão
E ficou ali, satisfeito.
Ah, eu não pude deixar passar!
Levei para casa, alimentei;
Mas o sabiá insistia em voar
E às vezes até saía de casa.
Eu, que não podia me dar
Ao luxo de ficar sem sabiá,
Resolvi guardar na gaiola,
Toda linda, em cima da mesa,
Para todo dia ele cantarolar.
Ele não parou,
Como você poderia imaginar;
Aliás, cantou como nunca
E fez os meus dias.
Mas ah, esse sabiá...
Ele não é meu, nem nunca quis ser.
Um dia fui ver a gaiola
E estava de portinhola aberta.
O sabiá voltou para o mundo,
Assim, sem nem explicar.
Mas quando eu penso
Que ele não vai mais voltar,
Ele pousa em minha janela
E pia dengoso e leve
Só para me lembrar
Que pode ser meu sabiá,
Mas o será
Da janela para lá.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Pequenice

Hoje você não ligou
Não me atendeu
Ou apareceu
Nem me afagou.
Hoje meu dia foi, assim,
Um silêncio;
Não ouso dizer mortal -
Mas anormal.
Eu vou, então,
Dramatizar
Ruborizar
Exagerar sem medo.
O excesso de sentimento
Compensa meu tempo
Gastado sentindo tão pouco -
Ou melhor, dizendo-o pouco.
As poucas e pequenas mágoas,
Quando não amontoadas,
Fazem bem ao nosso amor.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Esqueça

Esqueça o dia de hoje
Porque hoje nada mais é
Que um novo amanhã
Ou um próximo ontem.
Hoje só vai ser
O que aguentar
Entre duas janelas
Abertas no temporal
A trespassar-lhes seguidamente.
Hoje é você,
Esse vem-e-vai
De chuvas a nunca acabar;
Hoje você pode ser
Ao Deus-dará.
Não importa o que venha
Ou passe,
Esqueça o dia de hoje
Porque hoje nada mais é.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Lacrimosa

Há um ponto -
Sim, este ponto;
Este que tocas sem saber,
Que se perde em ti,
Lavrado do ser
Sem que a foice o tocasse,
Que resvalado na beleza
E na maldade
Sai machucado
De uma perfeição
Que diz ter tido,
Cai desamparado
Por entre os dedos,
Por entre a família
E o amor
Como uma dolorosa fita branca
A desmanchar
Bem ali, na tua mão,
Sem que possas algo fazer,
Sem sequer aparecer -
Este ponto é tudo.
Mas quanto tentardes encontrá-lo
Tanto se esconderá
Por entre os dedos da alma
Que como num afago
Te alisam os cabelos
Até perderes a busca
Por entre essa densa floresta
De onde não vais mais te achar.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Caçador

As palavras me rondam
Como abutres à procura
De um galho em que pousar;
Elas me doem as garras no peito
Como quem tira meu coração
Ainda pulsante, semimorto,
De dentro da caixa.
As palavras não me odeiam,
Não me amam,
Só querem meu corpo
Para baixar feito espírito
E escapar.
Livra-me, Zeus, das palavras
Que vivem de me caçar!

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Cristianismo e a pena de morte

Assisti recentemente a um vídeo que trata das "normas culturais", como seu autor propôs, que apoiam a pena de morte na sociedade americana. Segundo ele, o fato de o Velho Testamento da Bíblia fazer uso dessa sanção para inúmeros crimes bíblicos leva os americanos a aprovarem-na. Pela primeira vez aqui em meus textos me vejo defendendo a religião do que creio ser uma acusação injusta - a instituição de penas pode ter tido relação com a prática religiosa no passado, mas desde então era uma atividade concentrada sob as autoridades instituídas; ademais, o afastamento da pena de morte na sociedade é um processo extremamente recente (que ainda não terminou, como o fato de alguns estados americanos ainda a usarem demonstra) que inclusive adentra nossa era de secularismo e laicismo do Estado.
Quando falamos de penalidade em sociedades antigas, em geral notamos uma intensa brutalidade em sua aplicação, ao menos se comparada com o Direito Penal moderno. Uma das mais famosas instituições desse tipo é a chamada Lei do Talião, o famoso "olho por olho, dente por dente". Apesar de retratado na Bíblia, esse sistema também é característico do Código de Hamurabi, uma das primeiras codificações legais da humanidade, na Babilônia. O nome pelo qual conhecemos a lei hoje em dia (lex talionis), indo mais à fundo, tem origem no sistema legal romano, que eventualmente substituiu a "vingança institucionalizada" da Lei por uma compensação monetária. A literalidade vingativa do sistema, contudo, chegou a ser empregada nos tempos da Roma monárquica. Isso significa que a Bíblia, por mais que contenha elementos do Talião, não foi a precursora do sistema (acredita-se que tenha se inspirado nas leis babilônicas) nem sequer a única a promulgá-lo - pelo contrário: instituições que são consideradas fundamentais no processo de instauração do nosso sistema legal também o fizeram.
Mas nem precisamos ir tão longe. Mesmo em tempos de constituição do Estado moderno a pena de morte era empregada, e em geral para mais crimes além do "mero" homicídio. Trair o monarca, por exemplo, era um crime passível de morte. Ora, até mesmo a Revolução Francesa, símbolo maior do processo de republicanização do Estado, fez vasto uso da pena de morte, e não devemos esquecer que boa parte dos expoentes da Revolução queria a extinção do cristianismo, pelo menos no início do processo.
As teorias da pena começaram a aflorar, de fato, ao longo dos séculos XIX e XX, visando estabelecer princípios gerais para a função da pena no meio social. A pena passa a ser vista como retribuição estatal a uma determinada ação (em outras palavras, punição) ou como um meio de reintegração social, para citar duas correntes básicas. Ambas proposições ainda existem e entram em conflito constantemente no meio jurídico. A vertente da reintegração social é, hoje em dia, predominante, mas há críticas contundentes a suas proposições (não vou me delongar em suas explicações para evitar divagações). Por outro lado, o retribucionismo também persiste, e é forte em especial na opinião pública. Creio que mais que um simples "olho por olho", as pessoas gostam da ideia de que quem praticou um crime seja punido por seus atos, e esse é o principal conflito filosófico que leva uma parcela significativa da população a apoiar a pena de morte - e que essa última parte fique em ressalva - principalmente em casos de homicídio, em geral nos mais hediondos.
O cristianismo, afinal, se baseia na Bíblia - mas a maioria de seus fiéis impõe leituras reflexivas sobre o moralismo bíblico, e portanto não acredita na pena de morte como solução para todos os crimes para os quais ela é instituída em sua literalidade. Seria equivocado afirmar esta suposta relação entre cristãos e a pena de morte quando a grande maioria deles não é fundamentalista a esse ponto.

Só para complementar, este é o vídeo em questão:
http://www.youtube.com/watch?v=zl2Tye1IqJc&feature=feedf