quarta-feira, 25 de julho de 2012

Para Roma Com Amor

(Contém spoilers)

Tem uma característica que gosto muito na forma de Woody Allen fazer filmes: sua capacidade de congelar as críticas. Explico: em seus longas, Allen está constantemente representando as diversas caricaturas de indivíduos que estão de uma forma ou de outra envolvidos com a arte - sejam eles artistas, críticos profissionais, o público, pseudo-entendedores, etc. Com isso aborda uma vasta gama de discursos (e atitudes) possíveis com relação ao universo artístico, ao mesmo tempo que sempre parece deixar uma brecha de mistério para aquilo que poderia ser verdadeiramente o sentimento artístico, ocultando-o nas entrelinhas de sua narrativa. Assim, Allen consegue antecipar muitos de nossos movimentos na tentativa de analisar sua obra, expondo-nos ao ridículo de nossa postura; somos obrigados a conformar-nos com a situação e simplesmente aproveitar a diversão (e, claro, a mensagem) que ele preparou para nós.
O mais recente exemplo disso é o seu Para Roma Com Amor. O diretor incluiu no roteiro mais um personagem em seu já tradicional molde do pseudointelectual exibicionista na figura de Monica (Ellen Page), contra quem lança frequentes acusações de impropriedade (especialmente através de John, representado por Alec Baldwin). Também ridiculariza o público, que aplaude energicamente uma apresentação da ópera Pagliacci cantada inteiramente por um protagonista dentro do chuveiro; minimiza a crítica, que louva o artista da peça ao mesmo tempo que repudia a obra (reação, aliás, que boa parte da crítica americana está apresentando ao filme, ironicamente); e nem ele mesmo escapa, quando, com sinceridade que transborda da tela, Jerry, interpretado pelo próprio Woody, tenta se iludir afirmando que é um homem à frente do seu tempo.
Este é um filme no mais tradicional estilo Woody Allen, porém ainda mais embebido na fonte de Federico Fellini. Coincidência ou não, o projeto foi concebido justamente numa das cidades mais amadas pelo diretor italiano, e tenta traçar um perfil dela usando as histórias de suas personagens, exatamente como o fez Fellini em seu Roma, de 1972. A influência, contudo, supera o cenário e o roteiro, fazendo notar-se também nos trejeitos da narração, com toda a aleatoriedade com que os contos se intercalam e a loucura com que se dão. Afinal, é difícil imaginar alguém se perdendo em Roma, conhecendo um famoso artista na rua, indo parar num hotel com ele, sendo assaltada no quarto e terminar transando com o assaltante, como acontece com Milly (Alessandra Mastronardi), ou passando do anonimato para a fama simplesmente por estar indo ao trabalho, tal qual Leopoldo (Roberto Benigni).
Mesmo isolando as críticas, porém, o longa não está completamente imune a elas. Talvez Allen tenha abusado um pouco demais do recurso à comédia exagerada, quiçá pastelão. A piada se torna óbvia, por exemplo, quando Anna (Penélope Cruz), uma prostituta, se depara com vários de seus clientes em um evento da alta classe romana. Cruz, aliás, parece um pouco apagada no filme, e para ser bem sincero esperava mais de sua personagem, especialmente depois de vê-la brilhar em Vicky Cristina Barcelona (2008).
No geral, entretanto, achei o filme muito bom. Como de costume, Allen mistura com maestria uma narrativa aparentemente simples de cinema Hollywoodiano com discussões profundas acerca do ser humano moderno, fluindo com naturalidade entre boas risadas. Woody chega a insinuar uma ou outra moral da história com rispidez realista (que é melhor ser rico e famoso do que pobre e anônimo, que as paixões enganam, cônjuges traem e mentem, etc), trazendo a comicidade a fins variavelmente trágicos, mas sempre de maneira bonita e eloquente. Um retrato do qual Roma talvez possa se orgulhar.

Título: Para Roma Com Amor (To Rome With Love)
Diretor: Woody Allen
Roteirista: Woody Allen
Elenco principal: Alec Baldwin, Ellen Page, Jesse Eisenberg, Penélope Cruz, Roberto Benigni, Antonio Albanese, Woody Allen, Fabio Armiliato, Judy Davis, Greta Gerwig, Lino Guanciale, Alessandra Mastronardi, Ornella Muti, Flavio Parenti, Alison Pill, Riccardo Scarmacio, Alessandro Tiberi e Marta Zoffoli.
Duração: 112min
Lançamento: 20/04/2012
Distribuidora: Sony Pictures Classic

Avaliação: Muito bom

sábado, 21 de julho de 2012

Benny James

Um dia eu vou crescer
E ninguém vai querer me amar
É o que dizia Benny James,
O que pregava Benny James;
Um dia eu vou crescer
E ninguém vai me consolar
É o que pensava Benny James,
O que temia Benny James;
Um dia eu vou doer
E algo me vai favelizar
É o que esperava Benny James,
O que sofria Benny James;
Um dia eu vou morrer
E nada vai me segurar
É o que sonhava Benny James,
O que tremia Benny James.

Jornalismo... científico?

O conteúdo científico é, infelizmente, algo de difícil acesso em nossos tempos. Fora o isolamento de que padece a maior parte da sociedade quanto a pesquisas científicas, geralmente segregadas em publicações a que apenas os profissionais têm acesso no universo acadêmico, há o inevitável obstáculo da capitalização da informação. Isso significa que boas revistas de jornalismo científico só estão disponíveis aos que têm como pagar por elas.
Daí para frente o conhecimento é filtrado, no sentido pejorativo, em inúmeras instâncias antes de se tornar tão difundido quanto possível. Talvez o nível mais tradicional a que tal fenômeno ocorre seja o dos portais de informação online, em especial aqueles de grande circulação. É frequente a simplificação, ou mesmo subversão, de trabalhos sérios por leituras míopes de escritores que não estão preparados (ou dispostos) para lidar com as nuances técnicas da linguagem de determinadas ciências, muitas vezes exacerbando sensacionalismos para gerar audiência.
Tópicos polêmicos são as vítimas mais fáceis. Foi o caso com que me deparei ao procurar saber mais sobre o estudo de John Donuhue e Steven D. Levitt sobre a correlação, nos Estados Unidos, da queda nas taxas de homicídio a partir do final da década de 1980 e a descriminalização do aborto em 1973 (ou em 1970, no caso de alguns estados federados). Este é o link para o artigo completo; estes, a seguir, são dois "resumos" com que me deparei na internet - o primeiro é um trecho do livro Evidências Científicas Sobre o Desarmamento, de Marcos Rolim, e o segundo é da coluna de Gilberto Dimenstein, correspondente da Folha de São Paulo. Recomendo a leitura, pelo menos, dos dois últimos textos, que serão o foco de minhas divagações.
Em poucas palavras, o estudo propõe que a descriminalização do aborto pela Suprema Corte americana em 1973 com o julgamento do caso Roe v. Wade teve ligação direta com a queda dos homicídios em meados da década de 1990, quando as primeiras crianças nascidas após a decisão chegaram ao fim da adolescência, faixa etária na qual as mortes por homicídio tendem a aumentar.
Deixando de lado a questão da efetividade das conclusões alcançadas pelos autores do estudo, é curioso como somos apresentados ao trabalho de maneiras quase diametralmente opostas pelas duas versões mais curtas - do livro e da coluna jornalística. Enquanto Dimenstein diz que o trabalho discorre a relação entre a escolaridade, idade e classe social da mãe e um consequente "ambiente propenso à delinquência" do filho, Rolim dá a entender que tal "propensão" tem a ver, na verdade, com a criança ser indesejada. De acordo com Donohue e Levitt, a correlação com o "status" social da mãe diz respeito ao maior controle que o aborto permite à mulher sobre seu planejamento familiar, o que significa ter filhos quando acredita que sua situação econômica, acadêmica e social está mais adequada, não simplesmente que mães pobres têm filhos delinquentes - há uma diferença sutil, de dinamismo, entre as duas perspectivas.
Dimenstein, em seguida, parte para um ponto ainda mais controverso, dizendo que "Donohue e Levitt sustentam que jovens não brancos tendem a ser delinquentes". Rolim, por outro lado, afirma: "a incidência do fenômeno é mais comum entre setores mais desfavorecidos e marginalizados da sociedade". Se levarmos em consideração a exclusão típica que sofrem os não brancos nos Estados Unidos (e, como um todo, na civilização Ocidental), fica fácil compreender que estes não "tendem" à delinquência, mas estão mais suscetíveis a ela justamente por serem marginalizados.
Não deixa de ser perigoso cair em discursos higienistas, ou eugenistas, quando pensamos as condições de diferentes classes ou etnias dentro de uma mesma sociedade, contudo não parece ser este o caso. Muito pelo contrário, os autores parecem preocupados em evitar isso, ainda mais por já estarem tratando de assuntos potencialmente problemáticos em termos de percepção pública, como aborto e política criminal.
Claro que relacionar esses dois assuntos é um movimento arriscado, mas para desqualificar tal comparação, tanto quanto qualquer outra, é preciso um grande aprofundamento na questão - algo de que carece um segmento do jornalismo não-científico quando se trata de difundir estudos aos quais boa parte da população não tem acesso. É preciso muito cuidado, afinal estes veículos tornam-se verdadeiros formadores de opinião, que podem inclusive prejudicar a divulgação do conhecimento técnico de ponta.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Carta psicossomática

Gostaria de deixar aqui abertas, registradas, as minhas loucuras; as pequenas obsessões que se aprofundam como um câncer ao ponto de tomarem todo o corpo em sua gangrena pulsante, veia que geme solitária rente à garganta avisando aguçada faltar ar, mas sem tê-lo com certeza. Dizer, talvez, como a carta de Märta a Tomas - toda sua úlcera a cheirar pela boca, sincera e atônita, e no entanto contrita. Carta para o futuro, quiçá, feito memórias coloquiais trespassadas pela aberração do tempo, que como adaga perfura o coração para fincá-lo ao presente e apresentá-lo outrora a si mesmo, com ar inerrante e remissivo sobre o passado.
Deveria, então, deixar espaço para que o corpóreo convertesse-se em alma, como manda a formalidade das correspondências, mesmo que à própria velhice, crendo com isso acalantar um bocado da mente que assume a irresponsabilidade de categorizar a carne em mais de uma parte. Não se preocupe, caro leitor, se não o compreendes - a essa altura nem mesmo a minha consciência encontra disposição para confabular sobre suas ramificações. Mas sejamos findos com este engodo, que me incomoda.
Prefiro falar dos incômodos mais à flor da pele, que não se discreteiam entre pigarros e goles d'água. Estão mais próximos das loucuras, e são mais difíceis de discorrer que as bobagens da alma, mas não cedem a descritivismos fatídicos de sintomas escárnios. Isso porque, parece-me, numa análise psico-qualquer-coisa, vêm das superficialidades, mergulham às entranhas e, como cadáver de um afogamento, retornam aos músculos maculando-os de neuras e personalidade.
Já não quero mais falar. Não sei, dissecar-se a mente tão fria e metodicamente, saltando as vistas grossas com que as loucuras se olham, desapaixona o assunto. Fica sôfrego olhar-se, ver esse apanhado de pele gorda e espasmos reumáticos, e ficar quieto, quanto mais satisfeito. Viver definitivamente não é uma arte auto-contemplativa - requer fixação com as coisas externas, que por lá não nos identificamos e fica mais fácil amar. Claro que sem querer nos achamos pedaços pelo caminho, mas são ossos do ofício e, afinal, gente parecida conosco é em geral mais impressão do que realidade.
Nisso, então, há algum interesse: saber que entre as podridões nossas há os vossos perfumes para ajeitar; também que deve vir do profundo, de algures, das nossas carcaças um incenso suave para refrescar, ou não se poderia nos amar. Talvez o cheiro do corpo seja afável, mas de si não se sabe. O corpo, pois, não nasceu para ser sozinho.
Melhor acabar enquanto a conclusão é bonita.

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Maneirismo

Temerário seria ter que saber
Que vive sem maneirismo,
Que à moda de um Manuelismo
Desescrivaninhe-se já
E se meta no mato
Longe das pautas
E salas de parto,
Perto do cigarral,
Os mourismos do besouro
E os medos naturais.

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Preferivelmente

Quereria que à vida houvera algum sentido - como um evento espalhafatoso de funeral, em que os dois frontes de minha vida enfim se confrontassem num vexatório caos social, e no entanto em pura arte filosófica corporizada. É agradabilíssima a noção de causar, mesmo no post mortem, e contudo notes o quanto é limitante! Ficas a pairar numa só ideia que deseja desamparadamente reproduzir-se, semeada nos campos de mentes a crescer humanas, e sonha desiludida em transpor a evolução darwiniana do mundo natural ao universo dos pensamentos, de forma que se selecione sua safra em detrimento de outras.
Que me livre a morte de tamanho mal! Preferível é viver descausado, descomunal, inconsequente das horas tidas e liberto de ideias unas. Assim banha-se-me de ideais vagos do passado, do futuro, e se me permite o presente leviano saltitar de um a outro. E a morte? Que faça seu trabalho - venha, não deixe vestígios deste corpo e serenamente amontoe-o em suas conquistas que dentro das Eras pouco e nada importarão. A vida é para os vivos viverem, nada mais.

Floreio em linha

Cansa falar palavras em progressão;
Geometrizá-las num sentido da vida
E superá-las, uma a uma, com outra.
Exausta que num continuum sucedam-se
Feito linha nas mãos das Moiras.
Mas como salvá-las?
Que as palavras ensandeçam:
Seguirão delineadas - curvas, tortas,
Conformadas.
Ao palavreiro fica esse conformismo:
Que teus versos dancem na mimética
Disfarçados entre linhedos mortos;
Que consigam suspeitar a vida
Onde as incertezas pairam aortas;
E arbusteiem serenos na imaginação.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Duvidivinadatudo

Duvido de nada,
Divido tudo -
E endividado
Dilúvio-me fundo
Até enredado
Num manto sagrado
Escuro e velado
Escuso e difuso
Restar calado
E confuso.

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Surrealpopulitik

Nem vem que não passa
Em mim esse lero -
Teu esmero de enfeite
Não foi suficiente
E nunca vai ser.
Prefiro um estilo gatilho
Que chegue, que faça,
Que ensine, que cure,
Que a velha desgraça
Anda tanto na praça
A ponto de eu já
Não saber muito bem
Se é conversa fiada
Ou cheia de graça,
Maria de esmola
Ou real salvação.
O que sei nessa vida
É que a minha razão
De dizer bom ou mau
Ancorou-se no espaço
Onde só minha mente
Vive em levitação,
E daqui do universo
Gigante e pirraça
Não deixo que se desfaça
Essa minha noção,
Pois na noite ou no dia
Não há luz que trespassa
E o infinito lá fora
Não põe meus pés no chão.