quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

O PDL 234/11 - A polêmica da "cura gay"

Muito se tem falado acerca do polêmico projeto de Decreto Legislativo Nº 234 de 2011, que visa sustar a aplicação do parágrafo único do Art. 3º e o Art. 4º, da Resolução do Conselho Federal de Psicologia nº 1 de Março de 1999, que estabelece nomas de atuação para os psicólogos em relação à questão da orientação sexual.
Os trechos a que se refere tal Projeto possuem a seguinte redação:

"Art. 3° - os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas, nem adotarão ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados.
Parágrafo único  - Os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades. 
Art. 4º  - Os psicólogos não se pronunciarão, nem participarão de pronunciamentos públicos, nos meios de comunicação de massa, de modo a reforçar os preconceitos sociais existentes em relação aos homossexuais como portadores de qualquer desordem psíquica.

De acordo com o Deputado João Campos (PSDB/GO), autor do projeto, o Conselho Federal de Psicologia extrapolou o seu poder de regulamentação "ao restringir o trabalho dos profissionais e o direito da pessoa de receber orientação profissional", além de usurpar a competência do Poder Legislativo "ao criar e restringir direitos mediante resolução (...), incorrendo em abuso de poder regulamentar". Ele afirma que "o dispositivo questionado inova a ordem jurídica, ilegitimamente, pois cria obrigações e veda direitos inexistentes na lei aos profissionais de psicologia, em detrimento dos direitos dos cidadãos, ofendendo vários dispositivos constitucionais", e termina dizendo que "a competência [do CFP] para expedir atos regulamentares (...) ou recomendar providências não pode ser compreendida como competência para complementar a Constituição Federal, muito menos como competência para inovar no campo legislativo".
Creio que toda a interpretação técnica dada pelo senhor deputado incorre em graves erros de argumentação, falhando em defender sua proposição. Ademais, as falhas lógicas de tal exposição delineiam, para além do incorretismo, a inconstitucionalidade do projeto, tendo em vista que os conselhos federais de fiscalização de profissões regulamentadas não estão sujeitos à tutela da Administração, como salientou o próprio CFP em nota posicionando-se em relação ao PDL 234/11.
Vale ressaltar também que o mesmo CFP enviou à audiência pública da Comissão de Seguridade Social da Câmara dos Deputados sobre o referido PDL uma nota de repúdio, em que denuncia o falso debate de cunho unilateral da iniciativa, havendo na mesa de convidados apenas uma pessoa contrária ao projeto. Acrescenta-se a isso a contestação do Deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ) à presença dos senhores Silas Malafaia e Marisa Lobo neste seleto grupo, sendo ambos notórias figuras religiosas que, apesar da formação em psicologia, jamais escreveram sequer um artigo científico, sobre homoafetividade ou qualquer outro tema. É gritante o envolvimento de setores fundamentalistas no projeto, e isso não pode passar batido quando estamos discutindo não só seu embasamento, mas também seu propósito político e social.
Afirmar que a Resolução do CFP restringe o trabalho dos profissionais, e que isso ilegitimamente veda direitos inovando a ordem jurídica, é absurdo. A função do Conselho é justamente dispor sobre aquilo que é considerado conduta profissional ética. É tido como antiético, no meio acadêmico e nas principais instituições de medicina, psiquiatria e psicologia do mundo, inclusive a Organização Mundial da Saúde (OMS), o tratamento da homossexualidade como doença ou desvio de comportamento sexual. A homossexualidade foi retirada da Classificação Internacional de Doenças (CID) em 1990, o que (a despeito das confabulações de Marisa Lobo, que afirma tal ato ser resultado de mera votação, destituindo a iniciativa de caráter científico) reflete o entendimento amplamente aceito na comunidade científica de que a homossexualidade é uma manifestação natural da sexualidade humana.
Além disso, a regulação da atividade profissional não inova a ordem jurídica através da criação de obrigações e vedação de direitos de forma a usurpar o poder regulamentar do Legislativo. Para tal, teria que dispor dos mecanismos coercitivos estatais, a saber, o sistema penal. A máxima sanção que um conselho profissional pode promover é a revogação da licença. Ora, é esperado de um médico que siga as instruções éticas do Conselho Federal de Medicina, e qualquer comportamento que seja considerado anti-profissional será naturalmente sancionado. Isso não significa que o indivíduo está sendo privado de direitos, mas sim que, enquanto praticante de profissão regulamentada, deve responder aos princípios que regem tal papel social. O mesmo se aplica, naturalmente, ao psicólogo.
Quanto ao direito da pessoa de receber orientação profissional, não há nada que o restrinja, como bem salientou o CFP na já citada nota de posicionamento:
"Da leitura da Resolução nº 001/99, constata-se que, bem ao contrário do que sustenta o autor do PDL 234/2011, o CFP em momento algum veda a prestação de orientação profissional aos que pretendam voluntariamente alterar sua orientação sexual. O que se veda é que a(o) psicóloga(o) preste os seus serviços de modo a tratar ou prometer cura da homossexualidade, pois conforme exposto acima, a homossexualidade não é uma doença".
No mais, é interessante notar a tentativa de normatização sexual subliminar ao texto do projeto, em outras palavras, a presunção da heteronormatividade. Como bem notou Lucas Passos em uma análise profunda sobre o assunto:
"Que 'alguém' pode reorientar sua identidade sexual no âmbito de um tratamento psicológico, parece desde sempre problemático. Mas o fato é que, inquestionavelmente, reorientar-se é reorientar-se para a heterossexualidade, para a norma e o normal, é ser normatizado, dado que, no âmbito da nossa sociedade heteronormativa, é o homossexual que busca ser reorientado e o heterossexual não. Se Preciado (2002) já nos fala de formas políticas de censura sexual, ao tratar das operações performativas de intersexos e transexuais, poderíamos dizer que o jogo estratégico de reorientar um homossexual para a heterossexualidade faz parte da censura da identidade sexual, um tipo de cirurgia de re-designação da identidade sexual (a heterossexualidade) a que um 'eu' tem que ser submetido (...)".
O projeto, afinal, é uma clara mostra de setores conservadores da sociedade, incapazes ou indesejosos de aceitar a diversidade sexual e identitária da comunidade humana, utilizando-se de pretextos esguios e argumentações sinuosas em busca da manutenção de um sistema excludente baseado em posicionamentos religiosos ineptos de convivência com o diferente. É óbvio, explícito, para qualquer um que visite o assunto, que a chamada "cura gay" não passa de proselitismo religioso, defendido apenas por aqueles ainda imersos em interpretações fundamentalistas da vida. Vida, infelizmente, não só dos que pensam assim, mas também de todos nós, especialmente aqueles que, sem forças ou conhecimento para lidar com o preconceito de nossa sociedade sexista, cedem às suas falácias.

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Um jogo de buraco


A luz arredia do estrelado fazia bem à sensação de injustiça. Aliada à maresia, dava sossego, mesmo estando à porta dos pensamentos o ódio ainda doído da submissão frígida e frouxa ao silêncio. As palavras deixaram de escapar aos lábios, após a gritaria talvez um pouco desenfreada de agora pouco, ainda ressoando nos latidos de uns cães escondidos nas casas do condomínio de praia e numa ou outra luz acesa, depois de ter passado algumas horas da noite no escuro. Pouco a pouco iam se apagando, as janelas e os bichos. Na rua, pelo menos. Na mente de Atos ainda estavam bem nítidos, mesmo que na fala de antes a clareza tivesse faltado. Sempre falta. O falado e o sentido gostam de desencaixar, num algo dito errado aqui, num outro repensado ali, num mal expressado acolá, num mal compreendido. Pelo menos agora podia focar um pouco nos restelos iluminados da combinação de estrelas e mar, sob a trilha sonora das ondas e a tranquilidade da maresia no rosto e areia nos pés. Só incomodava um pouco no calção essa combinação calmante. O vento grudento arrastando consigo uns grãos a impregnarem nos pelos da coxa e no tecido das ceroulas. Ia acabar precisando de outra ducha na hora de voltar para casa.
Mal lembrava como chegara ali, falando nisso. Agora tudo parecia tão repentino, rápido. Considerou que de fato era um bocado cômico um rei de paus interromper uma partida de baralho com tanto reboliço. Não era ele a causa real, claro, mas rever o acontecido sob essa perspectiva realmente soava engraçado.
- Qual a graça? - indagou Cristina, ouvindo o leve riso do filho apesar dos sons de natureza ao redor.
Atos até esquecera a presença da mãe. Imerso num isolamento mental quase propositalmente egoísta, como para causar nela um sentimento de culpa, acabara permitindo à memória ocultar a companhia naquele cenário. Não quis responder. Em parte vingativo, noutra por receio de soltar alguma grosseria e recomeçar a discussão, ou correr o risco de perder a razão. Se já não perdera. Mas se assim fosse, ela o fizera tanto quanto. Aliás, não. Ela nunca a tivera. Estava errada desde o princípio.
- Nada - respondeu, afinal, com ar de indiferença.
Cristina achou por bem não forçar o assunto. Sabia das intenções do filho com sua fala ríspida. Estava cansada para retomar o contato, mas sabia que uma hora ou outra seria necessário. Não podiam permanecer sentados sob o luar pelo resto da noite, cada qual abraçado aos joelhos na areia. Também não queria se ver brigada com um rebento, independente do motivo da discórdia. Sentia a obrigação materna de iniciar a conciliação, mesmo sabendo talvez ser a sua posição parte do problema, num quadro geral. Não queria ver Atos perdido, mas também não queria achado num rumo errôneo, e ele detestava que ela pensasse assim. Ou ao menos assim dissera há pouco, em meio a uma ofensiva de palavras duras. Mas entre as frases agressivas, ela acreditava ter entendido os sentimentos do filho. Nem por isso perdera a oportunidade de desabafar a dor de ventre que sentia ao vê-lo diferente daquele sonho de gestante perdido há tantos anos. Não via sentido nessa rebeldia.
Agora se arrependera do ponderar talvez fantasioso de mãe de primeira viagem. Já não era mais jovem, onde tudo é ideal. E, segurando a barra do vestido para não lhe perder o controle na brisa noturna, arriscou:
- Eu te amo, filho.
- Você não sabe o que significa amar de verdade. - alvejou Atos no mesmo instante. - Você ama o protótipo que está na sua mente. No fundo você só ama a si mesma.
- Pode até ser que você pense isso, apesar de eu não crê-lo, mas não é assim.
- É, mãe? Você tem razão de novo, é isso?
- Na compreensão da forma do meu amor por você, sim, eu estou certa.
- Não estou falando disso. Digo da sua descrença no que penso. Vê como é inevitável para você achar que sabe mais do que eu, até quando o assunto somos eu e meus pensamentos? E se a sensação que você transmite no seu amar - disse, ironicamente - não for amorosa? Não é fundamental, no amor, o ser amado sentir-se como tal? Se não é esse o caso, só ama-se a si mesmo.
Novamente Cristina sentiu um desejo rompante de despejar sua frustração em palavras. Atos tinha um jeito de falar que lhe cerceava num sufoco. É claro que o amava, como ele podia questionar isso? Como conseguia não entender essa realidade? E que visão de amor era essa, tão fria e racional, incapaz de enxergar a sua humanidade inerente, dúbia e falível?
Num longo suspiro, conteve-se. Fitou novamente o mar e deixou o coração agitado resfriar com uma dose de estrelas e ondas. E enquanto o fazia, pensou que talvez o filho tivesse razão num ponto. Essa era uma discussão sobre quem estava certo, não sobre amor. "Amor", ela ponderou, "é ambíguo e imprevisível. Talvez ele saiba disso e esteja na verdade só buscando outra forma de me questionar. De certa forma, sinto também querer estar com a razão. Mas sobre o que, afinal? Regras de uma partida de buraco? Qual o mistério oculto nessa explosão"?
Atos, por sua vez, fervilhava impaciente com o novo silêncio imposto pela mãe. Sentia nesses cortes uma atitude intencional para irritá-lo. E apesar de ficar cada vez mais difícil ignorar a raiva, mesmo com a ajuda da praia, recusava-se a tomar a iniciativa da discussão novamente. Bastara a reclamação da injustiça cometida no jogo por Cristina; e ter ido atrás quando ela deixou a mesa e a casa irritada com a denúncia, mesmo que para dizer umas poucas e boas. Sim, ele era um pouco cabeça quente, e por isso mesmo não queria ter o título mais uma vez estampado na testa por voltar a desabafar. Não era sua culpa ter herdado o gene da teimosia, apesar da mãe nunca querer reconhecê-lo.
O rapaz sentia-se um poço infinito de mágoas, e não tinha explicação para isso. Via na mãe uma antítese natural. Nutria por ela um ódio de Nêmesis quase constante. Amava-a, a seu modo. Suportava o cotidiano. Porém mal se falavam fora das trivialidades. Detestava sua condescendência. Sentia nela um peso de remorso e desaprovação, mas acima de tudo uma obsessão velada com a verdade. Obstinada ao ponto de tentar apagar a verdade dele. Era uma luta por autenticação para Atos. Fazer valer o seu ser independente do dela. E ela querendo engolí-lo, absorvê-lo de volta ao útero - um ventre moral ao qual seu corpo tinha aversão.
As verdades, afinal, são assim. Nascem querendo viver, e acabam almejando tomar o mundo. A de Atos não era diferente, por mais que negasse. Ou melhor, fingisse. Verdades são mais humanas do que normalmente pensamos. A forma que se confrontam e conciliam, a ambiguidade de seus caminhos. O problema das verdades, enfim, é serem demasiado humanas. Interpretam e constroem sua passagem trespassando a realidade ao ponto de perderem-se dela, e então sua busca se torna um rito de retorno, sem conhecer a estrada. E ficam lá, eretas, complexas, estáticas a olhar o Universo sem saber onde erraram, sem compreender como encontrar o ponto de onde brotaram. Sem saber viver.
- Sabe - disse Cristina -, não entendo nossas desavenças. Elas parecem surgir do nada, em discordâncias tão triviais...
- E ainda assim vão fundo - completou Atos.
- Parecem tão rotineiras.
- E únicas.
- Às vezes sinto que são tão profundas que nem são nossas - encerrou Cristina, ao que Atos reagiu com certo espanto. Ele sempre sentira algo assim, mas não soubera dizê-lo.
O buraco é sempre mais fundo. Normalmente acaba num buraco negro, onde o mistério é eterno. E este é o mais profundo segredo de todos: o mistério maior para onde vagam as verdades, sugadas pela força do inevitável, é o infinito. Jaz em tudo? Ou em nada? Questões pesarosas demais para qualquer humano, excessivamente difíceis para as certezas. E, no entanto, inquietas, ficam ali incomodando, causando desencontros. O cinismo do cosmos, que compõe astros para destruí-los. E tudo que nos resta é contemplá-lo em sua imensidão, quando não estamos colidindo feito cometas e planetas.
- As estrelas estão muito bonitas hoje - irrompeu Cristina, quebrando o silêncio que se sucedera à convergência inesperada.
- O mar também. - respondeu Atos - A ideia de vir à praia valeu a noite, com essa vista.
Cristina sorriu. Olhou para o filho, que retribuiu o olhar. A natureza tem um jeito muito próprio de sintetizar antônimos, mesmo não extinguindo os incômodos.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Viola Paira

Meus nervos não aguentam,
diz Viola.
Fadigo fácil.
O fado imposto,
A dura pena,
Pela Paira que rasteja no ar.

A Paira, se não sabes,
É uma ave como o abutre
Com feições de gárgula,
Que fica, imaculada,
Na contramão do vento.

A velha Viola não tem como
Lutar com um bicho tão violento,
Cujos olhos escravizam
Brilhando na dor do movimento contra-fluxo.
É possível ver as pedras
Escondidas sob os bolsos
Agarradas às mãos
Naquele olhar.
As pedras que penduram,
Que asilam,
Que mergulham em fino ar.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Marola da poesia


Para Jonas, elas eram simples. Diziam menos que imagens, seja qual for o significado disso. Ele as via como os ordenamentos das salas. Primeiro na escola, onde elas regraram-no. Depois no escritório, onde abundavam imperantes num mundaréu de documentos. Reconhecia sua utilidade. Também seu valor, quando um best-seller cativava-lhe apetitoso, as histórias contadas tão curiosas. Sabia também do seu agrado, as conversas de boteco, as piadas, cantadas e até desabafos, quando se faziam necessários. Ele as entendia, mesmo tendo esquecido o seu nascente, quando ainda pequenino lutava para juntar aqueles sons embaralhados, como se agitando um chocalho tentasse arrancar dele compreensão. O fato era esse: ele as compreendia agora, e isso bastava a qualquer um. Seu manejo era fundamental, e ali jazia sua vida.
Mas à palavra não bastava a malemá honraria.
Quando uma pomba branca pousou na janela do loft de Jonas, a princípio ele a viu com admiração. A beleza de um raro bicho desses em meio à cidade tão habituada às espécies cinzentas, malhadas, molhadas das poças nas guias, sujas de poluição. Depois... Não, não era possível uma ave tão límpida naquela decrépita paisagem. Devia ser domesticada, melhor procurar o dono. Ou seria algo mais? Um presságio de paz? O espírito de Deus incorporado? Uma reencarnação? Deveras faltava sentido nessa manifestação. Ergueu-se do assento para se aproximar, mas ela negou-lhe o contento e planou rumo à árvore no outro lado do quarteirão. E ficou ali, parada, entre os fios elétricos e a dúbia sensação.
Jonas sentiu-se engolido por essa passagem. Largado em sua imaginação, meditou os descaminhos da pomba, os mistérios de sua aparição. Os pensamentos inundavam-no. Será que viera dos céus? Brotara do chão? Não era mais um simples bichano. Era o elixir de um insano espiral mente adentro, o pano de fundo da sua loucura, o tecido no qual bordava uma sensação, e outra sucessiva, atabalhoando-se passo a passo numa confusa viagem.
A margem do pombo virava distante, a rua era de lava sobre a qual não podia saltar. A escassa imagem das penas áureas migrava na mente, fomentando uma nuvem a encobri-lo. E dentro do vapor uma metamorfose se impôs, transportando-o alto, longe do apartamento, da árvore e da cidade. Via-os todos, mergulhados na correnteza de palavras que nunca estiveram ali. Ou estavam? Elas compunham o todo, cada qual transformando-se em paisagem. Havia nada de decrépito ali, era tudo miragem encorpada num frenesi.
O fluxo jorrava pulsante, irrigando os neurônios a se iluminarem. Eram tantas as palavras que as encruzilhadas foram inevitáveis. Misturas rebeldes, neologismos, aneurisma de correlações. Logo reinvenções, novidades ou só puros sons. A tonalidade do cérebro em meio à corrente mudava, de ilhada, a estrada, a rapsódia, a mente encontrava seu timbre, libertrabalhada. E como o barulho dos trilhos acalmando-se inconsciente depois de passados os vagões, lentamente ela retornou.
Jonas pousou perplexo. Feixes de luz ainda cruzavam seus olhos. A marola das palavras, a ressaca da poesia, é forte demais para tragar. Exausto, recostou na cama cabisbaixo. Transcorridos alguns segundos, tomou coragem e olhou lá fora. Lá estavam a cidade, a árvore e a pomba, e também os seus signos. E a vida seguiu. Talvez Jonas não tenha percebido como cada imagem está tão recoberta de palavras ao ponto de ser impossível não ser inundado, devorado, tomado por elas em cada olhar fulminante no qual recaímos. Ou, quem sabe, algo mudou.

Sereneio


A cerejeira é minha árvore favorita. Gosto de descrevê-la assim. "Preferida" denota dubiedade, como se houvessem outras rivalizando-a. Não. Eu caí nas suas graças, no seu favor de deusa enrubescida, amorosa, quando num sonho de outono suas plumas róseas acariciaram minha face enquanto ela se sacrificava por mim, soltando-se leve no espaço entre seus delicados braços e minha cabeça.
Seu encanto é esse, afinal. O choro dengoso com que abraça o ar, e depois a grama. Lacrimosa. Amena. Imagino-me ela, toda sua paz e silêncio, sussurrando uma fina bruma no seu floreio, minguando no céu entre as nuvens, passando por ave quando balança lenta no vento estiado, contrito em tocá-la.
O desejo de ser rosa e vermelha sempre me vem à mente, mesmo compreendendo-o pouco. Entendo a vontade; o ser é que me comove. Talvez simbolize o poente, o chamado do sol à natureza dizendo  "descanse". O canto final dos pássaros e os mais belos reflexos nos riachos. E percebo como tudo cheira a sereno, mas não um odor de paz, tão somente. Pacificação - o rumo de um enredo. A viagem do corpo dormente, chegando no sono, no fantasmagórico estrato de mitificação.
Aquilo que vejo numa cerejeira é o sonho de um brilho rosado na escuridão. A chama da graça, da santificação, do corpo remido remando numa constelação. É dispersão em meio a uma nebulosa qualquer vagando o Universo num toque, numa palavra, num som. A mim, cerejeira soa como uma canção - que resvala, conforta e ecoa numa simples visão.

Digamos

Dizer o que mais buscamos
Insanos
Nem num trigal dourado
Ao sol
Onde amamos,
Nem sempre encontramos.
Dizer que desesperamos
Pranteamos
Quando ao pé dos penhascos
Olhamos
As ondas furiosas de nosso ardor
Arrancando pedra
Abrindo caminho
Forçamos
E só encontrando mais pedra
Impudor
Enganos.
Dizer que não acreditamos
Deixamos na chuva
Lavamos
Sonhamos
E quando parece que achamos
Não há como saibamos
Sem que morramos.
Na morte jaz
Toda a confirmação
Da confiança
Que ansiamos.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Suplício aos mundos

Quão dores
Quão choros
Quão mortes
Agoras.
Que os hojes
Não percam
Seu rumo
Dos ontens
Quando
Desfloram.
Que os ontens
Descubram
Os mundos
Além de sua
Muda e adubo.
Que os mundos
Resvalem
Circulem
Ondeiem
Espraiem
Rateiem profundos
Eternos e mudos
Por sobre agora.

O vulto das folhas secas

Quando ele me deixou, a paralisia tomou conta do meu corpo. Ecoou por dentro do meu tronco, tremendo cada osso no tórax e sacudindo os pulmões, o grito mais assustador que eu jamais pudera imaginar. E no entanto nem uma onda de som, nem um sopro, deixou a garganta. Oximoro, essa é a palavra. A compreensão infernal de como um todo pode ser nada simultâneo. Era uma explosão, um rodopio, o caso de embriaguez mais severo que tive; contudo vazio, delével - deleto -, fatigado. Exausto da longa e sinuosa trilha escondida no subterrâneo, sob a luz do dia e o caminho de um rio que fluía vivo, ali sem dizer, mas se fazendo notar. Todo caso de amor é, afinal, esse ambíguo traçado. As águas e suas cavernas. A pirâmide e sua tumba, esculpidas simultâneas, sem que se importasse com nada senão a beleza da obra. Queremos sempre o belo, e tomamo-lo, sem apreço pela cerimônia, das mãos da realidade. Mas a feiticeira sabe o que faz. Sabe que mesmo vendendo-nos essa poção tão desejada, como num passe de mágica ela retornará ao equilíbrio do feitiço, metabolizando em dor.
Entretanto o sequestro do corpo não fora sequer o princípio da dor. O choque de voltar ao mundo não bastara. Era preciso mergulhar no espectro da solidão antagônica ao amor, sofrer as sequelas de demasiada dose. Os meses seguintes foram de desconstrução. A casa, aos poucos, deixava pedaços. Enquanto os guindastes do ego puxavam-na com todas as forças precipício afora, restos da casca de concreto ficavam para trás, gotejando em enormes monólitos despejados na água negra a restar no profundo, o que sobrou de um rio cavernoso. Armários metade vazios, aquela bolsa não mais no sofá, a comida estragando rápido, um retângulo desempoeirado na parede onde estivera uma cópia de um Rothko... As doses exageradas de pó de café, uma maior organização dos objetos dispostos na casa... O pior de tudo foram a volta dos pesadelos e da nictofobia. Não há travesseiros que compensem na cama.
A sensação, afinal, é ausência de si. Não do outro. Ele perfaz tantos nichos em ti que te sentes despida, amarrada em galhos velhos, estufada de folhas amarelas escondendo cada poro. Outra noite sonhei delas brotando em meu ventre até vulcanizarem da boca cortando o dueto que cantávamos eu e o vento, e planarem nele infinitas. Vi-as chegando à lua, saindo da minha janela, quando um vulto no teto desceu agarrado às paredes e passou a engolí-las num beijo demoníaco. As relvas secas ainda restantes dentro de mim dançaram neste instante, uma sensação de borboletas voando, e saíram ainda mais enfurecidas. Foi tanto furor, tão depressa, que senti como se a vida me deixasse. Aquele instante durou um ano. Nem um gemido ousava lutar por espaço no rito macabro que me apossava. De repente via-me dentro de mim, num redemoinho amarelo urrando entre meus cabelos. O uivado da ventania era como um calafrio escalando minha pele. A força daquilo tudo arrancou-me de onde estava parada, e assustada rodopiei. As folhas iam se acabando, o ventre se esvaziando e eu vi minha garganta se aproximar. Lá fora, ou na consciência, senti-me lavada no furacão, e novamente vazia - vazia-completa. Sublime. Então soltei um grito, um clamor de paixão, de medo, de euforia e de luto. Foi quando acordei.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Cachalote

Cachalote escuso
No gélido mar
Vaga recluso
Num imenso pomar.
Se da vida um fruto
Puder te consolar,
Já valeu o indulto
No brilho do luar
Que recai obscuro
Sobre o teu respirar.

Faces

O mundo que quis,
Barulhenta como borboleta
Encaixotada na existência,
Rarefez em essência
Borrifada no luar.
Ali, nos sonhos ou nas ruas,
Transformada em loba
Ou atiçando felina a cauda,
Caço os resquícios deste cheiro
Escondido nos sons da escuridão,
Perfume a lentamente escapar
De seu astro recipiente.
O mundo como vejo
Era inevitável - e isso nunca vi.
Mas ainda encontro
Sob o transe do estrelado
Os vestígios de uma entrada
Que me chama alada
A uma deusa desgarrada
Adormecida na face escura da lua.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Escaravelharia

Família, família,
Janta junta todo dia
Lava a louça, lava à pia,
Tão pia, tão pia...
Escaravelha calafria,
Unidade monetária
Da crença comunitária
Capital-hereditária
Tão fria, tão fria.

Caramujo

Comiserado estribo
Marchando meu punho
Manchando as palavras,
Solta a minha tribo
De paixões, meus falcões
Sob os seus falconetes,
As minhas visões
De seus ilusionismos.
Preponderam navegações,
Os seus versaillismos,
Na minha nação infeliz
Ancorada nos seus calabouços,
Escrava de mim.
Escaramuça, meu sulco,
E esparrama grotesco
O caramujo de ti.

domingo, 9 de dezembro de 2012

Linguarudo na brasa

O linguado alado
Atravessado no espeto
Língua forno afora
Suas entranhas.
E não vendo
Quão estranhas
Suas escamas
Nesse achego,
Queima lento no rolado
Que lhe impõe o "seu" graveto.

sábado, 8 de dezembro de 2012

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Poema-colchão

Poemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoemapoema.

Juntá-los-ei suficientes para um colchão.
E forrado nas suas manias me despedaçarei num gigante salto plumado,
Lançando suas letras aladas por todos os lados numa macia explosão.

Palconfessionário

Parca é a palavra
Que ousa marcar
Um pecador.
Melhor que chamasse
Enredo
E achasse em seus atos
Os laços de um só percalço
Demasiado para despedaçar
Em pecados.
Melhor que de vida
Se apegue descalço e remido
O rebento,
Livre das pontas de línguas
E pregas de saias
Presas na beira do palco.