terça-feira, 19 de agosto de 2014

Bulería

Você aí, cotado pra viver,
E eu cortado fora como um galho de sobra
Na poda dos corações valentes
Desenhando os nobres alazões da capital.
É foda.
Ponho logo essa hortelã picada na boca
Fumo por cima um baseado
E embasado nessa lírica retórica do ser
Pranteio mundo afora
Dançando junto um flamenco pra sensualizar as lágrimas
E, quiçá, torná-las acessíveis aos cavalos de Troia
Cavalgando por aí.
Estamos próximos, tu aí na escultura,
Eu cá, folha tostada,
Tão ridículos quanto o jardineiro
E quem acredita em jardineiro;
E quem não é o próprio jardineiro.
Na verdade, ninguém é jardineiro de si
E somos todos jardineiros uns dos outros
E somos jardineiros porra nenhuma.
Nada há de sensual em dizer essas coisas,
Nem de choro.
Mas de gozo também não.
São apenas reclamações de uma folha que fornada virou papel
E virando a página nada mais se encontrará para verter,
Apenas inversão de personalidades e troca de ofensas.

As minhas voltas

Volta e meia o ano não é ano;
Conto o tempo não-gregoriano,
Anti-juliano, pré-aristotélico,
Inumano.
Volta e meia o espaço não comporta
Mas não vaza no infinito;
É quase nada, perto de tudo
E longe de ainda mais.
Meia volta e estou circulando
Pela borda do traço
Onde a letra não engana,
Sequer chama,
Nem é letra.
É um traço torto do meu rosto
Esboçado no papel
Ou na parede
Ou nas estrelas
Ou na própria face
Da qual quis desvincular.
Ou talvez seja apenas o olhar.
Apenas olho.
Átomo.
Atônito e sem reflexo.
Às vezes sou reflexo sem imagem vertida,
Sem espelho que converta,
Sem luz que incida.
Sem moral. Sem costume. Sem volume.

Sem dor

Cigarro, suor e trabalho
Cachaça, tempo, cidade
Malabarismo, amor
Temor e metrô...
Os cheiros dos quais tenho terror.
Mas desses nenhum é maior
Que o de enumerar circunstâncias
Sem sentir-lhes o odor.

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Des Ti Lar

Olha o desvio, querido!
Viu? De lá?
Devias virar no pavio
Antes que cedo te queime,
Angarie o navio
E te cubra a pá.
Viva vinho,
Vide passarinho
E passa devagarinho,
Suave e tinto, ao poço de "quero-me cá".
Querer-se ao pé do caminho,
Amado e sozinho,
É melhor que um gole azedio
Da taça que outrem queira te ofertar.

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Dario

Daria para parar, pirilampo,
De paralelar minha ida ao escuro
E escusar meu ser obtuso na noite
Sem brilhar a luz de Dario a me paralisar
No caminho de quem não viveria se não confuso
A andando se apagar?

Vago

Quanta velocidade, sonho meu,
Nessa realidade cá.
Quanta inveracidade -
Os fatos não correspondem ao mundo,
Que outrora tátil hoje escapa.
Quanto escape chamam de tempo,
As armadilhas que desenho na calçada
E vão se tornando caminho,
As terras que vizinho sem tocar
Seus solos úmidos e cheiros distorcidos.
Quanta escrita não redoma em poesia,
Quanta letra não empina maresia
Ou pipa vida.

Como corre essa vazia, sonho meu.
Como falta canto na cantareira
E água pro ralo.
A vazão é maior que na tua verdade de lá.
Aí cobre chuva com vapor,
Sobe barro e sobra cor;
Converso com os vaga-lumes
E já não converso mais.

domingo, 10 de agosto de 2014

Talvez não

Hoje não houve circulação.
As tramas do mundo estiveram paradas,
Os ramos nascidos não se moveram mais para cima do chão.
Não houve movimento nas copas das árvores
Ou no fundo do lago
Ou nos tiros de luz rasgando a clareira
Para esquentar minha mão.
Hoje talvez não.

Conto sóis e luas

Outro dia, andando na praça, trombei com um espectro -
Uma sombra sem luz, sem corpo, sem lei, que falava.
Perguntei:
O que ainda fazes aqui? Perdeste o rumo do outro mundo?
E ela:
Perdeste tu. Aqui só há anticorpo, não é teu lugar.
Discutimos até o anoitecer, clamando o chão que...
Pisávamos ou resvalávamos.
Ao cair do sol, a sombra passou a brilhar
Como um vestido de diamantes sob os holofotes do tapete vermelho,
Enquanto eu me tornei voz sem assento
E resolvi deixá-la, o espectro preso ao chão, para viajar à lua.
Para meu azar era a noite da cheia, e quando sua luz incidiu sobre mim,
Passadas as nuvens,
Revirei humano e caí no infinito.

sábado, 9 de agosto de 2014

Bocai

Sou uma boca que caiu no mundo;
Grandes lábios com muito gozo na voz.
Sou ofensiva demais para alguns.
Para outros, apenas vulgar -
Nada que cause comoção, desde que eu fique cá
A rugir longe de si.
Hipócritas.
Sou bocarra, e não se iluda:
Bocarei mais que Boccaccio,
Beijarei mais que enfática
Engolirei o mundo
Que outrora fora gerado por minha palavra,
Gestado em minha glote,
Falado no meu mote.
Bocejarei teus medos
E volverei teus anseios
Até te libertares de ti por mim.

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Um caso de samba

Ê laiá
Êta leri laraiá
Epa lero, lorota, língua louca que rouca lá
É livre o linguado pra descabelar
Nas cadências do samba
E largar bamba a lira no lenga-lenga
Da vida denga
E dengosa dançar
Epa leri, ê laraiá.

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Joy(o)

Há uma aberração no âmago,
Na monção que encharca meu chão.
Há estultícia
Vitalícia em seu trepidar.
Há um vento que volta a soprar;
Há joio a ser colhido
E novamente nos campos esparramado;
Ave joio...
Sem ti, que seria o trigo?

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Íntimo-mar

(Menino - Roberta Sá e Trio Madeira Brasil)

Marejou o feitiço dos teus olhos
E marujei sem jeito nesse poço
Possesso feito amante noturno
Apraziguável somente se olhar
O corpo todo, o rastro de sopro
Resvelando tuas costas, tuas coxas,
Teus pés e o lençol a te semi-cobertar.
Maria-de-amores, Maria-de-dengo,
De pós-calejar teus dedos, tuas pernas,
Tua hipnose a me endiabrar,
Tuas serpentes nas íris, nos braços,
Nos cantos de luz de quem cama
E kamikaze desvia o lírio do ventre
Ao teu desconhecido antimar.

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Encosto no muro

Encosto no muro
E é como se me deitasse numa cama de esquecimento.
Reclino a cabeça
E é como se a deixasse repousar nos ombros de um amante.
Recordo tudo.
Tudo e mais.
O presente fala demais,
Mais que o passado,
Mais que o futuro
E dele jamais esperei tanto.
Não me traia, presente...

Toca um rebite floreado repetindo tudo que já nos foi dado

Floreado ao lado da ladeira
Entre a confraria dos ateus
E a barraquinha de feira
Em que a musicista alaúda,
A voz graúda,
Uns rebites de canção
Retocando o som da rua...

Um poema.
Ou será que só nasceu
Antes que os lábios meus,
Tema esse e outros poetas,
Os amantes e os estetas,
Antenassem nua a paisagem
Sobre a miragem que te acometeu?

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Facestratégia

Há dias em que sou gema
Preciosa e clara
Ou envolta em clara

Estratagema
Estratosfera

Fera
Ou extrato

Exalado no jardim
Sofrido no banco

Assentado na praça
No leito escuro do mar

Leite ou café
Café com leite

Mas visto de frente
Sem que se releve um lado
Não passo de menino.

Ferrotapa

Pego o metrô
Estou tonto
Desço a rua
Ando torto
Chego em casa
Não acho a chave
E nem embriagado estou.
Bem, talvez um pouco.
Uma dose de cachaça
E uma porrada de cotidiano
Que vinha me buscando
E acabou por me encontrar.
Agora a ferroada pegou.
Agora o tapa travou
Na mandíbula frouxa.
Não quero casa, não quero rua,
Não quero transporte público.
E agora, para onde vou?

domingo, 3 de agosto de 2014

Javali

Javali um sonho.

Recebi uma visita dos espíritos da felicidade.
Tudo passou rápido demais.
Sentamo-nos à mesa, passei um café.
Falamos de assuntos eruditos.
Rimos de coisas banais.
De repente era hora de partirem.
Há bichos na selva que se alimentam de espíritos
E roncam assustadoramente no calar da noite.

Javali um mito.

Era uma moça poeta quando criança.
Melhor que poeta, era ninfa.
Tão natural que nem a dor podia me doer.
Precisava de um escape para sofrer.
Um dia fugi pelo caminho do desencanto
E escapei para sempre de ser feliz.
Lá estava um enorme deus porco que me cobiçou
E em troca do tão desejado infortúnio
Pediu-me amor.
Hoje sou só poeta.

Javali uma vida.

Valho tantas vidas quanto já comi.
As carnes me passam, dissipam e saem desfibradas;
Desfibriladas; ventríloquas.
Já tive uma própria. Não mais.
Desde que me saciei do lombo de um javali selvagem
Virei vampiro de tempo:
Gasto-o todo para sentir os olhos piscarem
Por um segundo que seja.
Já fui muito mais...
Porém não quereria mais ser.
Aqui está melhor.

Jánãovalho e encravo melhor na seiva da vida.

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Sobremaneira

Minto
Mente
Menta
O sabor
Saberei saborear
Quando não souber de saber
E souber sobreviver
Ao soco de mentir
Ao sentimento
De sentir
Sem que seja
Sobretuvir.

Broto

Amor que não é amor
Que não brotou
Que não tem cor
Que estremeceu
Mas não eu
Algo, alguém, o trem
Lá na passagem distante
Onde entra o amor
Antes de ser alguma coisa
É qualquer coisa
Que não seja
E seja amor.

Arranha

Arranha rarefeita a trama desconexa
Sei lá se perversa, manha ou ganha.
Será que me apanha?
Será que desconversa?
Será que sabe até se bate o peito
Contra a fronte da tua testa?
O som é desconforto
Mas o ar é de "me peça"
Enquanto a vitrola vai batendo
Tentando coraçãoficar
Quem já ficou perdido na primeira remessa.