segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

Totem

(Shigeru Umebayashi - Lovers - Flower Garden)

Eu já me sabia
Desde sempre
Amor,
Mas não me conhecia.
Eu já entretinha
Essa velha sabedoria
No andor,
Mas de seus bordados não sabia
Os significados.
Eu seguia as escolas de amor
E me perdia em suas linhas:
As tragédias me doíam,
Os romances não convinham
E o realismo destruía a própria essência que mantinha.
Foi a modernidade que me entortou,
Eu dizia.
Cria a mente velha,
Fora desse dia-a-dia,
Mergulhada numa latência mais profunda,
Uma busca arredia
De propósito que o mundo descuidou.
Eu não sou daqui;
Eu não pertenço,
Mas não esqueço o passado
De que outra vida me dotou -
Ele está ali, doendo
Na lembrança de querer
O que em mim nunca brotou.
Pobre, pobre jovem
Que tive que enfrentar a solidão
Da modernidade
Para me encontrar.
A bem da verdade,
Eu não fazia ideia
De como me pensar
E recostava sobre o outro
Procurando apoio e alegria.
Mas o amor nunca foi externo.
Amar amor amoroso
- Não desses descalabros que se escutam por aí -
Faz uma curva mais esguia:
Primeiro entra e circula no pulmão
Pra só então, bem aquecido de vida,
Soprar no outro a emoção.
Amar é totem que te guia,
É a própria tapeçaria
Da tua composição.
Amor e solidão, eu te diria,
Andam juntos nessa Terra,
Pois o amor só se descobre por inteiro
Na casa vazia
Onde possa às suas raízes dar vazão.
Amor é mais que companhia -
É acompanhar-se todo dia
E assim ferver uma energia
Que vaza da palma da mão.
Como é tênue a lã que fia
A diferença entre amor e desilusão!
Tantos nunca a encontram -
Morrem no caminho
Ou passam a vida em desacalanto,
E quem chega lá pode tão facilmente desfiar...
Mas eu não desencanto
Da jornada de amar.
Eu canto todo dia o pranto da melancolia
Que alivia a minha dor;
Como marinheiro em romaria
Eu reconto a história de vida
Que a esse canto do mar me navegou,
Pois repetida a alegoria
A tristeza aos poucos se sublima
E condensa em felicidade
Sobre o conto que em mim ficou.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

Ferrugem de Mar

Eu teria mergulhado tão profundo
No escuro
Por você.
Mas, enfim, não foi pra ser.
Teria me ancorado no breu do oceano
E respirado pelas brânquias
Que a vida de mergulhos me deu.
Contudo, entendo que o fundo não foi
A morada que você escolheu.

Entendo...

Hoje estou ainda atracado
Nalgum leito profuso
Mas não mais escuro
Pois o mar secou.
Apoio meus dois pés no raso
E vejo o sol brilhando ao lado;
E ainda que adorne de queimado
A pele agora quente de suor,
O grilhão enferrujado
E a história tracejada em minha memória
Não me deixam esquecer
Que aqui é o fundo de tudo -
Aqui de amor o mundo inundo
Mesmo sem água a me encher.

sábado, 15 de dezembro de 2018

As Escrituras

Como eu me explico
A quem não me sabe
Sem impor palavras duras
Que engessam a história
Num memorial à la Ramsés?
Como me narro
Sem me santificar
Num caminho único
De redenção para todos -
Como me livro de ser religião?
Como me livro
Sem correr o risco
De me encadernar em pautas finas
E linhas retas
Sem flexão ou movimento?
Quero me contar,
Mas talvez o eu-lírico se apodere do conto
E junte os pontos
Com outro discorrer.
Quero me guardar em algum lugar
Onde não me esqueça
E aos outros aqueça,
Mas nada garante que me lerei
Com olhos de encontro ao invés de lembrança
Ou que eles entendam o que tenho a dizer.
Talvez, enfim, eu deva me esquecer
E aceitar que num poema enterrado na gaveta
Eu esteja melhor representado
E a paz do silêncio e do oculto
Em mim prevaleça.

domingo, 9 de dezembro de 2018

Floreio

Te desejo
Que floresças
Com raiz no escuro
Pois as flores regadas de escuridão
Nascem mais coloridas.
Te desejo
Completo
Pois incompletude corrompe
A busca dos ramos teus
Por amor.
Te desejo
Confuso
Pois a confusão desbalança
E sem desbalanço não há reequilíbrio,
Sem desbalanço não há reconstrução.
Te desejo
Em mim
Pois no eu corpo há morada pra ti -
Deixa eu ser o teu lar
Que tão bem me construí.
Te desejo
Espelho de água
Onde me veja inteiro
E mergulhe em busca do que não vi.
Te desejo sem freio no meu quadril
Pra que ele trema um shimmie
Mais intenso do que o coração jamais sonharia em pulsar
Espalhando por todo o corpo um sangue quente de movimento
Como o amor deseja.

sábado, 1 de dezembro de 2018

O Mergulho

O sino da danação ressoa
Me chamando no vento;
Minhas asas pretas chamuscam
Da queimação que arde no ventre
E se desfazem em cinzas no ar;
Os berrantes que levo na fronte
Tremem doloridos com cada badalada
A profanar os céus.
O fogo escorre dos olhos
Em lágrimas de lava rasgando a pele.
Mas se sou magma,
Sou pedra fervente.
Renascerei asas de labaredas vermelhas
E alçarei voo no denso subterrâneo
Onde a rocha se pertence.

terça-feira, 13 de novembro de 2018

Olhos da Cor do Fogo

Que eu me rasgue ao meio
E caiam fora as tripas;
Que minha pele se incinere
E meus ossos quebrem;
Que meu ventre se contorça
E a coluna se distorça;
Que eu engula a língua,
Arranque os olhos
E entupa os ouvidos com ferro quente;
Que meus pulmões implodam
E o coração estoure,
Que o fígado se corroa
E os rins se ressequem,
Mas quem sou, isso não dou.
Não dou a nenhum fariseu
Ou sacerdote do ódio
O pedaço gritante de mim
Que sustenta minha resiliência.
Tripudiem minha mente o quanto for -
Dentro dela ainda residirei,
Mesmo se fraco e disforme.
Eu não vos pertenço
Nem nunca pertencerei.
Pertenço somente a mim
E aos que escolhi pertencer.
Pertenço às bruxas, putas, viados
E rondas noturnas de rebelião.
Pertenço aos teus medos
E aos espaços sombrios da tua mente
Que não consegues desbravar -
Cá estou eu,
Sem medo do escuro.

sábado, 3 de novembro de 2018

Lírio do Campo

(Alessio Bax - Zion hört die Wächter singen (From "Cantata Wachet auf, ruft uns die Stimme", BWV 140))

Encontrei um lírio no campo
Que ficava ali no seu canto
Entre outros tantos
Cabisbaixo como eu.
Fazia um esforço desgramado
Para não cruzar olhares
Com as outras flores
E correr o risco de expor a cor
Escondida no seu centro.
Se dizia cuidadoso
Ou exigente
Ou quiçá muito amoroso
Para a polinização inconsequente.
Mas a bem da verdade
O lírio amarelou
E temia descobrir nelas
O vermelho em carne-viva;
Temia pois sabia, lá no fundo,
Da igualdade que compartilham
E da solidão que vem
Ao se descobrir parte de um conjunto
Onde as semelhanças aproximam
Mas também afastam;
Sabia, enfim, que em toda flor a cor esfria na beirada,
E de pétalas geladas se faz um jardim arredio.

Que sorte a minha, então,
Ver o lírio ali no chão
Onde meus olhos residiam
E achar refletido nele o olhar
Do qual, de tanto me esquivar,
Eu já me cria foragido.

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Ícaro

Flameja, mariposa,
Do alto da tua enganação -
Pois restou-lhe saber que o sol
Não é para todos,
E aos que não são seus
Ele é elétrico e perigoso.

domingo, 28 de outubro de 2018

Suspiro

Ouve agora, meu querido, o que vou te dizer:
Mas ouve atento que essa fala é um suspiro delicado
Que desmancha na brisa.
Ouve com cuidado que ele vibra fino
Na umidade do ar.
Aluga teu ouvido colado aos meus lábios
Que eles vão te contar da deusa que sirvo -
A deusa dos poetas
Que atende por muitos nomes
E que com seus versos livres
Estremece teu corpo
Como se fosses por dentro um furacão.
Ouve bem, pois nesse arrepio a deusa te diz
Que a pequenez do teu suspiro
É a tempestade que encharca o mundo.

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

As Estrelas No Chão

É tarde na noite
E eu letargi.
Sinto os sentidos esvaindo da ponta dos dedos,
Como se dependurasse os braços entortados
Para fora do dorso -
Ou talvez sejam as pílulas que entornei,
Os papéis que cortei com a língua
Para me declamar melhor.
A noite avança errática a cambalear;
As estrelas estão tremendo,
Riscando o céu e o chão molhado,
Mas ninguém parece se importar.
Pisam seu brilho como se nada fosse
E ainda cacarejam entre gargalhadas
Pensando ser sãos.
Eu os desprezo, demônios!
Como ousam dançar sobre os corpos celestes?
Imaginam de terra o firmamento?
Ratos! Criaturas vis!
A ordem do mundo não vos permite essa insanidade!
O mundo está de ponta cabeça
Mas eu não vi a Terra girar.

- Eles roeram o ventre da Mãe que os gestou, então reviraram suas entranhas para deixá-la do avesso e requentar o mundo com sua rebelião.

Assustei-me com essa fala repentina.
Olhei à minha direita, e era uma fada a me complementar.
Teria eu pensado em voz alta?

- Não. Ouço tua voz interior... Ela vaza dos teus olhos, tão belos olhos cheios de dor!

E que te dizem meus olhos doloridos?

- Dizem do teu horror a esses tempos perdidos; da tristeza em ver tanta água de chuva gasta em vão, apenas para refletir na terra os astros, e sobre estes a perdição. Eu entendo, meu pequeno. O mundo dos humanos está de fato ao avesso: sofrem a existência, mas recusam a atadura que ofereço.

Agora entendi!
Esta não é uma simples fada,
É a própria Mãe Natureza quem me fala!
Ó, Mãe de todas as coisas, perdoa-me!
Se antes soubera o tamanho da profanidade
Que aflige tua criação,
Há tempos teria me levantado por indignação!
Mas leva-me, ó Mãe, de volta ao ventre!
Se necessário queima esses vermes
Que contra ti se levantaram,
Mas, ao menos a mim, me retorna
Ao Éden de onde outrora
Meus antepassados caíram pela tentação!

- É este o teu desejo: voltar ao estado das coisas antigas, e que sejam punidos aqueles que contra a ordem das estrelas atentaram?

Sim! Este é o meu desejo.

- Assim seja. Eu, Ramnúsia, deusa da retribuição, ponho sobre ti minha atadura, e, atados os olhos, comando que residam em ti as tuas palavras. Ordeno que voltes ao estado antigo dos humanos, andando de quatro sobre o chão; e que seja dolorido esse andar por profanares com ainda mais patas o solo onde as estrelas refletirão. Decreto, por fim, que tua mente retorne ao ventre da Terra em pagamento por toda vida que Ela germinou, e lá nas trevas eternas te atormentes pela húbris que sobre si conjurou.

domingo, 14 de outubro de 2018

Hoje Tive Uma Realização

Hoje tive uma percepção
Que diz com terrível frieza
Algo sobre mim.

Hoje achei que não gostava de chuva.

Mas logo em seguida fantasiei
Sobre chuvas perfeitas
Em lugares mais românticos
Ou onde pudesse ouvi-la cair
Fazendo sons que se completassem
Nos relances que eu lhe desse
Por uma janela
Onde a admirasse melhor.

De repente lembrei de um banho de chuva
Que tomei em completa alegria
E quanto ele me fez bem...

Então olhei novamente para dentro

E para meu desespero vi
Que eu não gosto da chuva aqui
Pois não gosto de onde estou.

quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Estado de Garça

Talvez na verdade eu não queira
Servir de apoio a quem não me apoiou.
Apoiar, apoiou -
Mas não no que importa
Quando importou.
Talvez o estrago já esteja feito
E agora só nos reste existir
Nessa vida miserável de aceitação,
Dessas migalhas de atenção.
Eu sei que nada disso precisa ser verdade -
Saber, sei -
Mas querer é outra história.
Eu não nasci pra Cristo
E o infinito perdão,
Nem espero o mesmo martírio
E abnegação.
Espero, apenas;
Espero que o tempo passe
E eu alcance um novo estado de graça
Onde o perdão seja mais fácil -
Mesmo sabendo que na vida nada funciona assim -
Mesmo sabendo que no estado de graça só se chega com perdão.
Talvez me falte aceitar
Que não passa de ilusão morta
O estado de garça - de beleza sem emoção -
Paralisada num mundo a-histórico.
Talvez ainda falte em mim o mecanismo que permite bloquear o ódio
E filtrar dele a fundação
Para abraçá-la
E desmontá-la
Com perdão.
Que os deuses me perdoem pela dificuldade
Em dar tão pequeno passo de aceitação!
Que os deuses me perdoem,
E perdoado eu encontre forças.

sexta-feira, 7 de setembro de 2018

070918

Não há aqui novas palavras
Ou estruturas de frases
Nem brincadeiras que aflijam a verdade bruta
Com suas superficialidades.
Não há nada de novo;
Não tenho o que oferecer.
Tenho apenas um silêncio atroz
Carcomendo as beiradas da minha personalidade,
Sem saber se ele tem razão de ser
Ou só me congelou por causa da mecânica
Em que minha organicidade se constituiu.
Não há beleza alguma -
Apenas a necessidade crua
De alguma coisa escrever.

sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Sentimentalizado

Evidentemente é bruto,
Mas também tão delicado...
Tem um quê de astuto
E ao mesmo tempo avoado;
Tenta até ter ritmo
Ou, quiçá, ser rimado,
Mas o mundo que carrego por você
Não consegue se deixar conformado
Num versinho curto e bem trabalhado -
Há coisas horríveis aqui.
Não subsiste o poema que tente
Me descrever com algodão-doce -
Faltaria o algodão encharcado de sangue e pus
Que usei pra limpar o machucado.
Faltaria vida a um poema tão mumificado;
Faltaria desgosto nesse excesso de bom-grado;
Faltaria o que entre nós sempre tem faltado...
Mas disso talvez nem o poema mais versado
Saiba o que dizer.

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Paciente

Disseram que a rotina e a maturidade
Amansariam meus demônios,
E de alguma forma até o fizeram.
Mas eu os ouço ainda -
Parece que estão apenas entorpecidos,
Como se drogados para não devorarem meus ossos
Junto com a mente.
A verdade de hoje é que não sei
Se vale mais a pena implodir num turbilhão em polvorosa
Ou continuar aquietado esperando a morte vir
Paciente por mais sessenta anos.

segunda-feira, 27 de agosto de 2018

Poema Farsi

Um dia passei debaixo da árvore em frente à portaria do prédio
Onde morava havia tantos anos que já nem sabia
Prestar atenção nela,
E, quando olhei para cima,
Os fachos de sol amarelo cortando
O verde de suas folhas antigas
Me fizeram ver que habito um poema persa de amor e aventura
Há muitas eras -
Só faltava escorrer sobre os olhos a tinta sagrada
Do filtro que revelaria
Quanto subestimo a minha realidade,
Mergulhando-a num mar de normalidade
Ao invés de poesia.

domingo, 26 de agosto de 2018

Ventre Colorido


Que você tenha florido
Que tenha morrido
Por dentro
Pra ressuscitar em adubo
No ventre colorido
Do pensamento.

sábado, 25 de agosto de 2018

Medo da Luz

Temo que dizer
As palavras por inteiro
Sem ruir as paredes que o silêncio
Assegurou.
Tenho um fim
Tatuado na contracapa do corpo,
Mas manchado de passado
Decaindo num novo começo
De quase nada
Porém encantado.
Temo que não,
Não sairei da penumbra
Da estaticidade
E da minha verdade -
Ela continuará aqui,
Encoberta em plena luz
Para que a agarres
Se quiseres iluminá-la afinal.

Idólatras

Já me disseram tantas vezes
Pra não me entregar à adoração -
Que a idolatria corrói a alma
E destrói o coração -
Mas por que não?
Há males bem piores pelos quais morrer.
Todos temos bezerros de ouro,
Cada qual com seu altar
Onde queimar a carne e se entregar,
Qual o problema de se incendiar por outro?
Se sei da minha religião,
Se entendo seus efeitos sobre mim,
Se conheço as ramificações
Do meu broto em carmim,
Por que não queimar?
Se sei externar a dor
E, arrancado o toco,
Me recriar,
Por que não me deixar ser assim?
Cada qual com suas árvores sagradas brotando do peito,
Cada qual com sua gente morando dentro
E sua cegueira selecionada.
Cada um deveria saber do deus que escolheu.

segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Amenidade

Tudo que se move é tão pequeno
Que me ameno.
A angústia ainda grita alguma coisa
Encravada na foice
Vislumbrando a lavra,
Mas o arremate já não é tão afoito
E eu não me açoito com a mesma intensidade.
Acho que é a idade -
Talvez esta outra cidade,
Ou mesmo a minha morosidade.
Talvez o tempo do corpo esteja se adequando
Ao tempo do mundo
E o sincronismo vai batendo em cada segundo
Para me anestesiar.
Eu temo o fim do fim de tudo
Onde eu ressoava apocalíptico badalando no ar,
Mas não trocaria a paz da calmaria
Pelo caos da minha arte.
Prefiro poemas um pouco vazios,
Meio apertados em linguagem empobrecida
E cujas ideias penam para escoar.
Prefiro ser quem sou agora,
Mesmo que haja em mim mais silêncio...

Talvez eu prefira o silêncio.

segunda-feira, 30 de julho de 2018

Em Charque

(Big God - Florence + The Machine)

Não dói
Demais
O teu desaparecimento.
Não dói
- Demais -
Pois esta cena eu reconheço;
Já fiz doer igual
Em quem igualmente não mereceu -
Na verdade pior,
Já que eles não tinham a carcaça dura
De fibra mais que madura
Em armadura envolvendo o peito.
Quase não dói, na verdade -
É só um incômodo,
Pois sei a rota que a mente toma
Quando abandona para não ruir.
Sei do silêncio que invoca
Para subsistir
Crendo que a resiliência
Reside em fechar as janelas
E deixar a carne petrificar no escuro
Em escudo.
A única dor
É a de ver refletida num espelho profano
Deitado no chão
A tranca do corpo.
Eu me vejo em ti
E, por mais que te imagine em mim,
A essa altura já sei
Que somos parecidos demais para destrancar as comportas
E encharcar o colchão.

segunda-feira, 18 de junho de 2018

Monetian

I miss love
As a bridge over colors
From a lost vision of Monet.
I miss it as a sickness
And the cure for my afflictions.
I miss the mess my life was made of
When my love brushed through the lines
Without fear of what's to come
And all the joy that filled my time
When all was love
And love alone.

quinta-feira, 17 de maio de 2018

Poema do Futuro

A tua amargura me acusa de erros que não cometi -
Mas vejo cápsulas mergulhadas no vômito
Que estão recheadas de verdades obscuras;
Então nem tudo é dor e mentira,
Mas superar o nojo para engoli-las
Às vezes parece mais do que eu sou capaz de conseguir.
Por enquanto me contento com a capacidade
De ver as verdades semi-digeridas
E temer o futuro onde eu seja tão doente quanto tu
A espumar inconsistências sobre os outros
Pelo que fermentou no interior -
E temer, pior ainda, que eu já esteja no futuro.

segunda-feira, 14 de maio de 2018

Cerveau à la Recherche de Temps

Não há cura para o "em si" -
Apenas a loucura de que se ature
A química desbalanceada
Torcendo que o tempo sobreaqueça a reação
E frite os circuitos numa nova ligação
Com outras doçuras e amarguras cognitivas
Que me degustarei.

terça-feira, 8 de maio de 2018

Garganta do Diabo

(So Afraid - Janelle Monáe)

Tudo se resume a algo muito primordial,
Tão animal que urge um ventre
Onde casulo
Enquanto o mundo ruge
Seus motores sem direção
Garganteando o Diabo no rochedo bruto
E, ao moer, lançando agulhas de arenito
Que tiroteiam a carne de quem passou
Muito perto do fosso escuro
A mastigar os aflitos
No atrito agudo
De dentes só humanos
Mas demasiado monstros para enxergar.

segunda-feira, 9 de abril de 2018

Poço Sinuoso

Talvez eu nunca vá saber
O lugar dentro de mim
Onde as coisas acontecem.
Na verdade, tenho que aceitar
Que talvez esse lugar
Só exista quando eu quero esconder
De mim
As verdades que se depositam na pele
Mas invento residirem bem mais fundo,
Como se o mundo não fossem pequenezas
Que se agigantam fingindo escuro -
Transformando o que era simples
Num poço sinuoso
De onde não quero sair
Pois é muito mais gostoso
Me sentir misterioso, enfim.

quinta-feira, 29 de março de 2018

O Ilusionista

É engraçado como as coisas flutuam
Em seu estado mental;
Elas se transfiguram de acordo a dança das luas,
Subindo as margens de um ou outro ideal
Elásticas conforme a figura
Que desejam fazer de si.
Lembro, por exemplo, de odiar amores platônicos
Por destruírem a minha constância
E esticarem as pontas da mente
Até quase o rasgo da vazão;
Recordo quando os cria
Um veneno pernicioso ao amor realista,
Enchendo-o de expectativas
Que terminariam por me naufragar no isolamento;
Mas também vi o platonismo
Como o filtro onde se retêm
Os anseios que ninguém sacia,
Deixando-me mais leve
Para voar de amores.
A mente escorrega difusa
Entre os conceitos que cabem na navegação
Usando-os como velas içadas ou recolhidas
Conforme o vento que lhe toca -
E o vento nunca sopra numa única direção.

Difícil mesmo é distinguir a própria mente
Na corredeira de pensamentos -
Ela é mar, ela é barco ou é vento? você me pergunta,
Ao que a resposta retorna confusa
Mergulhada na mistura de significação.
O poeta, no fim, não passa de um ilusionista
Escondendo e mostrando as cartas
Até encontrares no movimento
Uma razão desvairada
Que na verdade não passa de emoção
Fantasiada de sentido da vida.

quarta-feira, 28 de março de 2018

Os Quereres

A vida pode ser o que você quiser -
Só esqueceram de dizer
Que esse negócio de querer é complicado demais.
Às vezes teus quereres vão querelar
E preferir se apagar
Pois dentro da mente há tanta coisa
Que o que queres pode se perder
Na hora de despachar;
Noutras ainda vão bater de frente
Com o querer de quem vem lá
E aí tem que se organizar -
Você, os teus quereres e os outros seres
Cujos quereres estão do lado de cá,
E até a vida atender a querelância
Pode ser que ela já tenha vindo a acabar.
E ai de quem disser que nessas palavras verdade não há!
Só nega as trevas do querer
Quem prefere mentir para negar direitos
Ou para a si próprio consolar.

Éon

A cada era
Que a minuta ata
Aterra mais um terabyte
Da inocência que minha pele
Só consegue escapar divagada
Nas esferas subterrâneas
Das órbitas cibernéticas
E seus vazios de profundeza infernal.

E cada fera
Que desuso engaiolada
Nas palavras-cemitério
Não consegue enclausurar
O jorro imundo me escapando
No suor de bailarino
Que a cada rotação se decepciona
Com a imperfeição do movimento
E espalha riscos de molhado
Fétido e melado sobre o chão.

E a terra gira
E jorra infinda
Até que apague sua entranha
E sobre estranho o seu casco
Por um tempo no infinito
E então sobre só tempo
E então nem isso.

domingo, 4 de março de 2018

O Lugar Encantado

O meu encanto
Está escondido no mesmo lugar
Onde o horror de mim transborda.
O espaço onde desabrocha
Minha personalidade
É um cemitério bem adubado
Pras flores crescerem.

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Talvez

Por um momento esqueci
O que é pensar em você -
Num curto intervalo de tempo
Fingi que você não existia
E talvez eu tenha ficado melhor.
Mas talvez também eu tenha surtado
E pensado que eu preciso transar com qualquer um
Que parece com você.
Talvez eu tenha me amado tanto
Ao ponto de amar
O que você representa
E tudo aquilo que aguenta
Existir dentro de mim
Por causa docê.
Talvez, no fim das contas,
As minhas ideias de amor
Sejam tão internas quanto focadas nivocê;
Talvez na verdade eu não consiga parar de falar sobre o amor
Porque meu amor é tão absoluto
Quanto o discurso
Que eu fiz pra tentar me entender você.

sábado, 24 de fevereiro de 2018

Meu Cantinho

Eu quero criar o meu canto
Pra que nele o encanto de mim
Possa se desmanchar no pranto
E ainda assim ser entre quatro paredes
O meu charme
Imaginado nas redes do meu Bonfim,
Feito amarra que não se desfaz
Se não por um fim
Que posso desprender imerso no meu timbre.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Cansei de Falar de Amor

Eu já cansei de falar de amor,
Mas o amor não cansou de falar por mim.
Mesmo quando não estou amando
- Aliás especialmente nessa situação -
Ele entra sorrateiro na minha discussão:
Enquanto um hemisfério do cérebro dá argumentos
E o outro retruca,
O amor vem e dedilha os nervos do corpo caloso
Dizendo
"Não! Chega de bobagem!
Toma aqui uma estiagem pra abrandar tua amargura.
Toma como uma dose de uísque ou tequila
E augura besteiras mais leves que vão preencher teu ser."
Eu, então, calado
Consinto que de fato é mais gostoso me deixar aqui de lado
Por um tempo
Enquanto o amor cantiga uma emoção nas minhas conexões neurais.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Tremer

Temi que o meu encontro se perdesse,
Mas ontem o temor era que o encontro
Em seu excesso me esquecesse.
Temi perder os devaneios
E temi devanear,
Como se desvanecesse toda vez que mudo as margens
Da minha fluidez -
Como se não fosse fluxo a minha passagem
E insólita a própria solidez.
Eu temi o tempo
Sem perceber que o que acontecia
Era o próprio tempo a se temer -
Era o espaço que tremia dentro do acontecer.

sábado, 3 de fevereiro de 2018

Aluado

Quando descobri que ainda sou jovem
Decidi olhar a lua de relance
Por muito tempo
E nela vi uma metáfora nova
Sobre a fase cheia -
Mas só sobre essa,
Se não já vira tempo
E daí fica coisa demais pra falar;
O problema foi que me distraí
E quando vi falava de outra coisa
Porque também a música trocou
E eu dançava diferente
Com a sua luz branda resvalando no desenho do meu rosto
E rebatendo no olhar
Esvaziado pela plenitude de dançar um passo
Mais além do meu espaço.

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

A Calma Dor

Quantos amores será que ainda tenho dentro de mim?
Sei que já gastei alguns, talvez cinco ou seis,
Mas não faço ideia de quantos mais virão
Ou, quiçá, quais voltarão outra vez.
Eu pergunto também porque sinto que os meus amores
Vinham de um lugar de escassez
E eu me derramava no chão
Sofrendo perdido numa insensatez de quem não conhece
A tez da própria pele.
A minha entrega era absoluta,
De um romantismo doente que se ausenta de si
Para buscar no outro sua lucidez -
Mas acho que não sou mais assim.
Quer esse amor seja mesmo bonito
Ou só o esforço perdido de me procurar
Num lugar onde no fim não resido
Eu honestamente não sei.
E agora que ele está estendido
Com as mãos invertidas
Declamando seu sentido meio narcisista
Aconchegado em mim,
Será que consigo de novo me desequilibrar
- Um pouco que seja, de um jeito bonito -
Sem dilacerar minha calma no atrito?
Eu quero amar um amor tão aflito
Quanto era belo sofrer -
Mas quero que o grito doa
Imerso na suavidade onde novo eu me encontrei.

domingo, 28 de janeiro de 2018

O Significante da Levitação

(Mystery of Love - Sufjan Stevens)

Você me levitou pra fora d'água
E eu saio reclinado no fino ar das tuas mãos
Escorrido de longos pingos a deixar meu corpo molhado
Sob o sol de um verão de Toscana.

E eu temo te perder -
Mas sem temor algum.
O meu apego é só um ponteiro no tempo
Rodando sabe lá se infinito
Ou até parar.

E eu não deixo a vida me roubar
Da beleza e do esquisito
Que me significam estar aqui
Seminu no teu calor
Agarrado a nada como se tudo fosse
Dentro das minhas mãos.

sábado, 20 de janeiro de 2018

Baixa Por Inteiro

Vem, espírito -
Vem com a confusão de tesâo,
Amor e compaixão;
Com a rejeição, a fuga,
O trauma e aceitação;
Vem com dois homens,
Com três
Ou quanto quiseres
Na construção da minha mente.
Vem e baixa
Minha imunidade
À realidade fria do interesse.
Vem e desnuda meu passado
E meu futuro;
Vem e desgosta o meu sabor estático
E deixa só o indeixável,
O insaciável querer da verdade
E seu inexorável pender
Rumo a uma facilidade
Que me faça viver
Na naturalidade real de mim.

quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

Brinco

Brinco de casulo
Dependurado num sorriso nem sempre falso
Mas raramente brincado -
Eu cabulo o intervalo
Entre meu e seus corpos
Pra ficar presente só o que falo
E deixo a intenção apagada na confusão.
A verdade é que enclausurado
Entre alegrias que são verdadeiras
Eu me permiti esquecer
Na metamorfose que me trata
Se sou borboleta ou lagarta.
Eu brinco tão esticado do lóbulo
Que não ouço o que me é sussurrado
Ou sequer o que é desejado na mente
Fingindo plenitude na felicidade opaca.

sábado, 6 de janeiro de 2018

Descolocado

Cê não consegue, né?
Se colocar no lugar de outra pessoa -
Se encaixar na vida em que você quer ficar.
Cê não consegue amar!

sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

Descrito

Pouco importa a linha,
A letra,
O sonho escondido na palavra,
A rima,
O ritmo,
A clave dando o tom,
A grafia,
A telepatia da cabeça à folha,

O espaço

Ou o entrave.

Pouco importa a estrutura,
Mas diante da ruptura
Eu já não sei o que ficou -
Já não entendo como foi que o poema se escreveu e
Como eu
Aqui chegou.

terça-feira, 2 de janeiro de 2018

As Águas do Nilo

(And Just Like That - Abel Korzeniowski)

Esteja calmo, meu amor,
Como as águas do Nilo.
Esteja num cortejo gracioso
Que desabrocha no mar
E, ainda que corram nas tuas entranhas
Monstros gigantes e o arrasto do tempo,
Lembra que a água é tua
Enquanto tua borda durar -
São tuas a vida e a correnteza
E sob o feitiço do teu encanto
É somente onde perdura
A beleza, apesar da feiura.
Esteja calmo, amor,
Que a tua calma é a própria transcendência,
A essência do meu vigor.